— Não joga mais, sr. Augusto? disse ela.
— Por ora não, minha senhora.
— Parece-me pouco alegre.
— Ao contrário... estou satisfeitíssimo.
— Oh! O seu rosto mostra não sentir o que dizem seus lábios; se aqui lhe falta alguma coisa...
— Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.
— Então que falta?
— A sra. d. Carolina!
A boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de avó acabava de ser incensado: era tocar-lhe no fraco.
— Gosta de minha neta, sr. Augusto?
— É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele, mostrando as flores.
— Vá buscá-la, disse a sra. d. Ana, apontando para dentro.
— Minha senhora, tanta honra!
— O amigo de meu neto deve merecer minha confiança: esta casa é dos meus amigos e também dos dele. Carolina está, sem dúvida, no quarto de Paula; vá vê-la e consiga arrancá-la de junto da sua ama.
A sra. d. Ana levou Augusto pela mão até o corredor e depois o empurrou brandamente.
— Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de minha estima para com o amigo de meu neto.
Augusto não esperou ouvir nova ordem: endireitou para o quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada; abriu sem ruído e parou no limiar.
Três pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob o peso de sua sofrível mona, era um objeto triste e talvez ridículo, se não padecesse; a segunda era uma escrava que acabava de depor junto do leito a bacia em que Paula deveria tomar o pedilúvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era uma menina de quinze anos, que desprezava a sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre mulher; este objetivo era nobre...
D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a porta e por isso não viam Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não sabia o que via.
— Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse d. Carolina.
Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.
A escrava abaixou-se e puxou os pés da pobre Paula; depois, pondo a mão n’água, tirou~a de repente, e sacudindo-a:
— Está fervendo!... disse.
— Não está fervendo, respondeu a menina; deve ser bem quente, assim disseram os moços.
A escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com presteza tal, que bateu com os pés de Paula contra a bacia.
— Estonteada!... Sai... Afasta-te, exclamou d. Carolina, arregaçando as mangas de seu lindo vestido.
A escrava não obedeceu.
— Afasta-te daí, disse a menina em tom imperioso; e depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os contra o peito, chorando, e começou a banhá-los.
Belo espetáculo era o ver essa menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher, banhando-os com sossego, mergulhando suas mãos tão finas, tão lindas, nessa mesma água que fizera lançar um grito de dor à escrava,
quando aí tocara de leve com as suas, tão grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das impressões desagradáveis que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram. Acabou-se a criança estouvada... ficou em seu lugar o anjo de candura.
O sensível estudante viu as mãozinhas tão delicadas da piedosa menina já roxas, e adivinhou que ela estava engolindo suas dores para não gemer; por isso não pôde suster-se e, adiantando-se, disse:
— Perdoe, minha senhora.
— Oh!... O senhor estava aí?
E tenho testemunhado tudo!
A menina abaixou os olhos, confusa, e apontando para a doente, disse:
— Ela me deu de mamar.
— Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas mãos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia encarregar-se do trabalho em que a vi tão piedosamente ocupada.
— Nenhum o fará com jeito.
— Experimente.
— Mas a quem encarregarei?
— A mim, minha senhora.
— O senhor falava de meus escravos...
— Pois nem para escravo eu presto?
— Senhor!
E nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de Paula, enquanto d. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.
Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a jovenzinha recebeu os pés de sua ama e os envolveu na toalha que tinha nos braços.
— Agora deixemo-la descansar, disse o moço.
— Ela corre algum risco?...perguntou a menina.
— Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.
— Obrigada!
— Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? disse Augusto, oferecendo a sua mão direita à bela Moreninha.
Ela não respondeu, mas olhou. com gratidão, aceitando o braço do mancebo, deixou o quarto de Paula.
Capítulo XV: Um dia em quatro palavras
Ao romper do dia de Sant’Ana estavam todos na ilha de... descansando nos braços do sono: era isso muito natural,depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado.
Com efeito, os jogos de prendas tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de d. Carolina e Augusto lhes deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha tornou-se mais travessa do que nunca; mil vezes barulhenta, perturbava a ordem dos jogos de modo que era preciso começar de novo o que já estava no fim; outras tantas rebelde, não cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um só beijo e aquele que atreveu-se a abraçá-la, teve em recompensa um beliscão.
Finalmente, ouviu-se a voz de vamos dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo.
O último que se deitou foi Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a passear pelo jardim, quando todos se achavam acomodados; de volta do seu passeio noturno, atirou-se entre Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu. Os estudantes dormiram juntos.
São seis horas da manhã e todos dormem ainda a sono solto. Um autor pode entrar em toda a parte e, pois... não, não, alto lá! No gabinete das moças... Não senhor; no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os quatro estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o nosso Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é isso?... Dá um beijo em Fabrício; acorda espantado e ainda por cima empurra cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...
Oh, beleza! Oh, inexplicável poder de um rosto bonito que, não contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o ilude e ainda zomba dele dormindo!
Estava o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de quem ele tivera até aborrecimento e que agora começava com olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha terna e amorosamente despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se sentara à sua cabeceira~ que, traquinas como sempre, em vez de chamá-lo queria rir-se acordando-o pouco a pouco; que para isso aproximava seu rosto do dele, e, assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a titilação causada pelo sopro; que ele,