Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
Que faria ela àquela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam - ela roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa. Recordou o seu pé, o bocadinho da meia que vira quando ela saltava as lamas na quinta, e essa curiosidade inflamada subia pela curva da perna até ao seio, percorrendo belezas que suspeitava... O que ele gostava daquela maldita! E era impossível obtê-la! E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua da Misericórdia, pedi-la à mãe, vir à Sé dizer-lhe: "Senhor pároco, case-me com esta mulher", e beijar, sob a proteção da Igreja e do Estado, aqueles braços e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa de Alegros!...
Abominava então todo o mundo secular - por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na idéia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga - mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?... - E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora idéia que esse domínio só era válido na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé - mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito místico de abrir ou fechar as portas do Céu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amélias tremessem da sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denúncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição da sua Sé, fazer estremecer, à idéia de castigos torturantes, aqueles que aspirassem a realizar felicidades - que lhe eram a ele interditas; e pensando em João Eduardo e em Amélia; lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição! - Assim aquele inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão contrariada, ambições grandiosas de tirania católica: - porque todo o padre, o mais boçal, tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento místico ou nas suas ambições de dominação universal: todo o subdiácono se julga uma hora capaz de ser santo ou de ser papa: não há seminarista que não tenha, durante um instante, aspirado com ternura à caverna no deserto em que S. Jerônimo, olhando o céu estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça, como um abundante rio de leite: e o abade pançudo que à tardinha, à varanda, palita o dente furado saboreando o seu café com um ar paterno, traz dentro em si os indistintos restos dum Torquemada. A vida de Amaro tornou-se monótona. Março ia muito molhado, muito frio; e depois do serviço na Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Às três horas jantava; e nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente, do jantarinho na Rua da Misericórdia, quando Amélia, com o seu colar muito branco, lhe passava a sopa de grãos-de-bico, sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicência servia, tesa e enorme, com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em quando, desviando a cabeça, assoava-se ao avental com ruído. Era muito suja: as facas tinham o cabo úmido da água gordurosa das lavagens. Amaro, desgostoso e indiferente, não se queixava; comia mal, à pressa; mandava vir o café, e ficava horas esquecidas sentado à mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do prato, perdido num tédio mudo, sentindo os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala desabrigada.
Às vezes o coadjutor, que nunca o visitara na Rua da Misericórdia, aparecia ao fim do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava calado com o seu guarda-chuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao pároco, repetia, invariavelmente:
— Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.
— Está claro, rosnava Amaro.
Ao princípio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joaneira, provocando, animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escândalos da Rua da Misericórdia. O coadjutor, por servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfídia.
— Ali há podres, hem? dizia o pároco.
O outro encolhia os ombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, numa expressão de malícia; mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalizassem o senhor cônego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, frases moles; um batizado que havia; o que dissera o cônego Campos; um frontal do altar que era necessário limpar. Aquela conversa enfastiava Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito distante da panelinha eclesiástica: não o interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades tão comentadas do senhor chantre, os roubos da Misericórdia, as turras da câmara eclesiástica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas palestras eclesiásticas em que tão femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade duma caturrice e a tortuosidade duma conspiração.
— O vento está sul? perguntava ele enfim, bocejando.
— Sempre! respondia o coadjutor.
Acendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guarda-chuva, e saía com um olhar de revés à Vicência.
Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava só. Procurava ler, mas os livros enfastiavam-no; desabituado da leitura não compreendia "o sentido". Ia olhar à vidraça: a noite estava tenebrosa, o lajedo reluzia vagamente. Quando acabaria aquela vida? Acendia o cigarro, e do lavatório para a janela recomeçava os seus passeios, com as mãos atrás das costas. Deitava-se sem rezar às vezes; e não tinha escrúpulos: julgava que ter renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler orações no livro; celebrara o "seu sacrifício" - sentia-se vagamente quite com o Céu!
E continuava a viver só: o cônego nunca vinha à Rua das Sousas, "porque, dizia, era casa que só o entrar nela até se lhe agoniava o estômago". E Amaro, cada dia mais amuado, não voltara a casa da S. Joaneira. Escandalizara-se muito que ela não lhe tivesse mandado pedir para ir às partidas da sexta-feira; atribuíra "a desfeita" à hostilidade de Amélia; e, mesmo para a não ver, trocara com o padre Silveira a missa do meio-dia onde ela costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquele novo sacrifício!
Todas as noites Amélia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração que ficava como sufocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ela conhecia os passos fofos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os olhos, como na fadiga duma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e às vezes, pelas dez horas, quando já não era possível que ele viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe intumescia a garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:
— Vou-me deitar, estou com umas dores de cabeça que não paro!
Atirava-se para a cama de bruços, murmurava numa agonia:
—