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Amaro, você tem razão. Estive a pensar no caso... É melhor para você viver só. De modo que vista-se, e vamos ver a casita.

      Amaro, calado, rapava a cara com desespero.

      A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobília, como disse o cônego, "podia passar a veteranos"; algumas litografias desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros; e o imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados, as paredes riscadas de fósforos, e até sobre um poial da janela duas peúgas quase negras.

      Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manhã o cônego ajustou-lhe uma criada, a Sra. Maria Vicência, pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o cônego Dias) era a própria irmã da famosa Dionísia!

      A Dionísia fora outrora a Dama das Camélias, a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: gozara a honra de ser concubina de dois governadores civis e do terrível morgado da Sertejeira; e as paixões frenéticas que inspirara tinham sido para quase todas as mães de família de Leiria causa de lágrimas e de fanicos. Agora engomava para fora, encarregava-se de empenhar objetos, entendia muito de partos, protegia "o rico adulteriozinho" segundo a singular expressão do velho D. Luís da Barrosa, cognominado o infame, fornecia lavradeirinhas aos senhores empregados públicos, sabia toda a história amorosa do distrito. E via-se sempre na rua a Dionísia com o seu xale de xadrez traçado, o pesado seio tremendo dentro dum chambre sujo, o passinho discreto e os antigos sorrisos - mas a que faltavam já os dois dentes de diante.

      O cônego logo nessa tarde deu parte à S. Joaneira da resolução de Amaro. Foi um grande espanto para a excelente senhora! Queixou-se, com amargura, da ingratidão do senhor pároco.

      O cônego tossiu grosso e disse:

      — Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por quê: é que este arranjo do quarto em cima, etc., está-me a arrasar a saúde.

      Deu outras razões de prudência higiênica, e acrescentou passando-lhe com bondade os dedos pelo pescoço:

      — E o que é perder a conveniência, não se aflija a senhora! Eu darei para a panela como dantes; e como a colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma beijoca, Augustinha, sua brejeira! E ouça, como-lhe cá as sopas.

      Amaro no entanto embaixo ia emalando a sua roupa. Mas a cada momento parava, dava um ai triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama fofa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita onde ele lia o Breviário, ouvindo, por cima, cantarolar Amélia.

      — Nunca mais! pensava. Nunca mais!

      Adeus as boas manhãs passadas ao pé dela, vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que se prolongavam à luz do candeeiro! Adeus os chás, ao pé da braseira, quando o vento uivava fora e cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!

      A S. Joaneira e o cônego apareceram então à porta do quarto. O cônego resplandecia; e a S. Joaneira disse, muito magoada:

      — Já sei, já sei, seu ingrato!

      — É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os ombros tristemente. Mas há razões... Eu sinto...

      — Olhe, senhor pároco, disse a S. Joaneira, não se ofenda com o que lhe vou dizer, mas eu já lhe queria como filho... e levou o lenço aos olhos.

      — Tolices, exclamou o cônego. Pois então ele não pode vir aqui em amizade, passar as noites para o cavaco, tomar o seu café?... O homem não vai para o Brasil, senhora!

      — Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era tê-lo de portas adentro!

      Enfim, ela bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor... Fez-lhe então grandes recomendações sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quisesse, louças, lençóis...

      — E veja lá, não lhe esqueça alguma coisa, senhor pároco!

      — Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado.

      E continuando a arrumar a sua roupa, o pároco desesperava-se agora contra a resolução que tomara. A pequena evidentemente não tinha aberto bico! Para que sairia então daquela casa tão barata, tão confortável, tão amiga? E odiava o cônego pelo seu zelo tão precipitado.

      O jantar foi triste. Amélia, decerto para explicar a sua palidez, queixava-se de dores na cabeça. Ao café o cônego quis a sua "dose de música"; e Amélia, ou maquinalmente ou com intenção, disse a canção querida:

      Ai! adeus! acabaram-se os dias

      Que ditoso vivi a teu lado!

      Soa a hora, o momento fadado.

      É forçoso deixar-te e partir!

      Então, àquela chorosa melodia repassada das tristezas da separação, Amaro sentiu-se tão perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir encostar o rosto à vidraça, esconder as duas lágrimas que irreprimivelmente lhe saltavam das pálpebras. Os dedos de Amélia embrulhavam-se também no teclado; até a mesma S. Joaneira disse:

      — Oh! filha, toca outra coisa, credo!

      Mas o cônego, erguendo-se pesadamente:

      — Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou consigo até a Rua das Sousas...

      Amaro então quis dizer adeus à idiota; mas depois de um forte acesso de tosse, a velha dormia, muito fraca.

      — Deixá-la sossegada, disse Amaro. E apertando a mão á S. Joaneira: - Muito obrigado por tudo, minha senhora, acredite...

      Calou-se, com um soluço na garganta.

      A S. Joaneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.

      — Oh, senhora! disse o cônego rindo-se, já há bocado lhe disse, o homem não vai para as Índias!

      — A gente é pela amizade que lhes ganha, choramingou a S. Joaneira.

      Amaro tentou gracejar. Amélia, muito branca, mordia o beicinho.

      Enfim Amaro desceu: e o João Ruço, que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o baú para a Rua da Misericórdia, muito bêbedo, cantarolando o Bendito, - levava-lho agora para a Rua das Sousas, bêbedo também, mas trauteando o Rei-chegou.

      Quando Amaro, nessa noite, se viu só naquela casa tristonha, sentiu uma melancolia tão pungente e um tédio tão negro da vida, que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar ali a morrer!

      Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatório, a bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a mofo; e fora, na rua negra, caia sem cessar a chuva triste. Que existência! E seria sempre assim!...

      Desesperou-se então contra Amélia: acusou-a, com o punho fechado, das comodidades que perdera, da falta de mobília, da despesa que ia ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter vindo ao seu quarto, dizer-lhe: Sr. padre Amaro, para que sai de casa? Eu não estou zangada! - Porque enfim quem irritara o seu desejo? Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos adocicados! Mas não, deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa do Beijo!

      Jurou então não voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes passadas pelo quarto, pensava - no que havia de fazer para humilhar Amélia. Q quê? Desprezá-la como uma cadela! Ganhar influência na sociedade devota de Leiria, ser muito do senhor chantre: afastar da Rua da Misericórdia o cônego e as Gansosos; intrigar com as senhoras da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altar-mor, à missa do domingo; dar a entender que a mãe era uma prostituta... Enterrá-la! cobri-la de lama! E na Sé, ao sair da missa, regalar-se de a ver passar encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, enquanto ele, à porta, de propósito, conversaria com