Ela ia contrariá-lo, mas pensou duas vezes. Era um homem habituado a dizer a última palavra.
Quem era? Por que irradiava poder mesmo naquele momento?
– Fala-me das pessoas que estavam comigo no iate. Conta-me tudo o que souberes.
– Depois de comeres qualquer coisa.
– Já não tenho fome.
– Que estranho, acho que eu também estou a perder a memória.
– Não acho graça – contrapôs ele, com um olhar duro.
– Nem eu. Passaste um mau bocado e tens de recuperar as forças. Como eu sou a tua cuidadora…
– Não gosto de ser mimado.
– Eu não mimo ninguém. Se comeres, conto-te tudo. Se não comeres, terás de aguentar-te porque tenho outras coisas para fazer, além de discutir contigo.
Ele apertou os dentes. Evidentemente, a situação não lhe agradava, mas agarrou o prato com frango e provou… até que acabou por devorá-lo.
– Está muito bom – reconheceu ele, olhando-a nos olhos.
– Obrigada.
– Foste tu que fizeste?
– Sim.
– Como?
– Tenho um congelador e uso o forno do exterior para assar as batatas. O resto faço ao fogo.
– Um forno exterior?
– Também faz umas pizzas belíssimas. Aprendi a usá-lo quando vivemos no Peru. Adorava o Peru. E o meu pai adorava o estratovulcão.
Ela sorriu ao recordar a emoção do pai quando o Sabancaya rugia e começava a lançar cinzas. Se não fosse pelas mulheres locais, teria ficado abandonada. No entanto, acolheram-na e ensinaram-lhe a cozinhar e ela, em troca, cuidava dos filhos delas, assim as mães podiam descansar um pouco.
– E em que outros sítios viveste?
– No estado de Washington, no Havai, Peru e Itália, mas aqui é onde estamos há mais tempo.
– Todos os lugares eram assim tão isolados?
– Não, este é o mais remoto, mas estou muito contente.
– Foi por isso que nos viste na praia e não te apresentaste?
– Somos de mundos diferentes – ela riu-se e retirou-lhe o prato. – Seria um ser exótico no teu mundo.
– Achas que sim? – perguntou ele, franzindo a testa.
– Claro. Não sei estar rodeada por homens bonitos. Não poderia estar a apanhar sol, tenho de estar ativa, estaria a pescar ou a estudar os lençóis freáticos para imaginar a história vulcânica… – ela calou-se por um instante. – Não sou o teu tipo de rapariga.
– Qual é o meu tipo?
– Uma rapariga que parece uma modelo em fatos de banho, que não carega nem a sua própria mala da praia, que se chateia se não tiveres vontade de conversar.
– Muito interessante – comentou ele com um brilho nos olhos azuis.
– O quê?
– Não gostas dos meus amigos. Não o tinhas dito antes, é uma informação nova.
– Não deveria ter dito nada. Não é importante…
– Mas isso diz muito sobre ti.
– Exatamente. Não preciso dizer-te o que sinto, deveria limitar-me a ajudar-te. É indiferente quem eu sou ou o que sinto.
– Podes ter opiniões.
– E expressá-las se servem para algo. Julgar as tuas amigas não serve de nada.
– Não sei porquê, mas pareces ser… especial.
– Sim, não encaixo, nunca encaixei.
– Isso é um pouco fatalista, não?
– Sê-lo-ia, se estivesse a lamber-me as feridas, mas estou aqui porque quero. Não me sinto esquisita aqui, em Khronos, não duvido de mim e isso é bom.
– Estás a dizer que a sociedade te incomoda.
– Sim – ela levou o prato e o garfo para o pequeno lavatório da diminuta cozinha, – mas cresci à margem da sociedade e isso é o natural.
– Nunca viveste numa cidade?
– Em Honolulu?
– É uma cidade a sério?
Ela voltou-se e olhou para ele de sobrolho franzido.
– Claro. Honolulu tem uma história fascinante. No Havai há mais coisas que não só as praias e o surf. No entanto, não lhe disse que já não gostava de voltar, que havia demasiados carros e pessoas, e era por isso que tinha ficado em Khronos enquanto o seu pai estava lá.
– Vocês eram uns doze na praia – prosseguiu ela enquanto se sentava. – Sete homens e cinco mulheres. O iate era enorme, um dos maiores que já vi. O teu grupo ia à praia durante o dia para banhar-se e apanhar sol. Também havia muita bebida e toda a gente se divertia.
– E na noite que caí borda fora…?
– Havia música e festa, como sempre. Os teus amigos estavam na coberta superior. No entanto, o que me chamou a atenção naquela noite foi uma discussão na popa. Ouvi vozes em crescendo. Foi por isso que me aproximei do mar.
– Eu estava a discutir?
– Sim – ela franziu o sobrolho. – Bom, não sei se eras tu. Ouvi uma discussão, um grito e algo a cair à água. Não pude ver bem e imaginei que alguém se teria atirado à água, mas quando não veio ninguém à superfície, assustei-me e…
– Resgataste-me.
– Não sabia que eras tu – repostou ela, incomodada. – Só sabia que alguém estava em apuros.
– Não acho que fosse fácil.
– Não, mas aterrorizava-me que alguém pudesse afogar-se.
– Arriscaste a vida por um desconhecido.
– De que serve mover-me como um peixe na água se não puder salvar alguém de vez em quando? – preguntou ela num tom desenfadado para aliviar a tensão.
– Teria morrido se não fosses tu – respondeu ele sem sorrir.
– Mas não morreste. Já só falta recuperares a memória.
Josephine sorriu, levantou-se e abriu um pouco as portadas. Conseguia sentir o olhar dele cravado nela. Corou e a sua pulsação acelerou. Olhava-a com atenção e intensidade. Fazia-se sentir-se inquieta, ela queria alisar a saia e ajeitar o cabelo, queria estar bonita… Abanou a cabeça. Não podia ser quem não era. Já tinha tentado isso em Honolulu e fora um desastre.
– A julgar pela tua pronúncia – prosseguiu ela, – poderias ser da Bélgica, França, Itália, Suíça, Sicília, Aargau e até dos Estados Unidos. Tens um sotaque dos Estados Unidos.
– Não me sinto americano – contrapôs ele.
– Então, apagamos os Estados Unidos da lista. Já só restam seis possibilidades.
– Sim, vamos reduzindo a lista.
Ela riu-se, mas parou de rir quando viu as nódoas negras que ele tinha na testa.
– Gostaria de saber o que aconteceu. Fizeste essas marcas durante a queda ou antes?
– Eu perguntei-me o mesmo – respondeu ele. Ela olhou para ele demoradamente, sem saber se deveria expressar as suas preocupações, até que ele disse exatamente o mesmo que ela tinha estado a pensar.
–