Ora, cada vez mais nós nos devemos convencer de que a Arte é "a natureza vista através de um temperamento".
Opinião esta já bem antiga, porque Virgílio, nas "Geórgicas", no princípio daquele tão encantador livro IV, em que nos pinta a vida das abelhas como nunca o fará Maeterlinck, já reconhecia que o assunto do poema pode ser humilde; o que importa â glória do poeta é que ele tenha a inspiração apolínea:
In tenul labor; at tenuls non gloria, siquem
Numína lava slnunt auditque vocatus Apollo...
E assim que ele, o monista violento e por vezes brutal, sem sombra de necessidade, diz nos "Gemidos de Arte”:
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!
Nota-se-lhe, então, algumas estrofes adiante, o desprezo peIas realidades chatas, embora inevitáveis, da existência:
Barulho de mandíbulas e abdomens!
E vem-me com um despreza por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
As suas perambulações intermundiais deixavam-no insatisfeito. Era insaciável o seu desejo de ascensão. A sua vibrátil sensibilidade cada vez mais o distanciava do mundo que ele habitava. Queria subir, subir sempre, de mundo em mundo, num incessante "quaere superius", como Santo Agostinho, contemplando as estrelas numa praia aromal do Mediterrâneo:
Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...
Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
Era um famélico da luz insuperável, das vastas amplidões iluminadas, de onde não se enxerga a chatice material da vida ordinária. Não queria ver as maravilhas e as rebarbas da existência. Trazia dentro de si um sonho interior tão grande, que só queria descortinar os amplos horizontes que aos miopes da ordem sentimental aparecem longínquos e vagamente esfumados. É que ele confessa nas "Queixas noturnas":
Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!
(...)
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
Observei desde princípio que este poeta era inacessível a inspiração erótica. Era isto, parece-me, efeito do, seu pessimismo substancial, o mesmo pessimismo leopardiano, de quem, como o poeta de Recanati, nasceu trazendo dentro em si, não a força da Vida, mas os germes deletérios da Morte; o mesmo pessimismo que o fazia detestar a Vida, como é fácil verificar compulsando o seu livro, fazia-o também ter pelo "amor' o mais profundo desprezo. Era natural. É pelo amor que se perpetua a Vida; logo. deve detestar o primeiro, que é um "meio", quem detesta a segunda, que é um "fim". Era perfeitamente lógico.
Por duas ou três vezes que ele toca no assunto é para proclamar o seu supremo desprezo não tanto pelo sentimento, como pela sensação, penso eu:
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
Materialismo brutal, dirão. Enganam-se. Ainda aqui, mais uma vez, tocam a rebate todas as campanas do seu acrisolado idealismo. O que ele detestava acima de tudo era o que ele chamava os "amores fúteis". Queria o amor impossível, o sentimento puro, espiritual, fluido, etéreo, imarcescível, que para ele era:
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!
Eis por que lhe chamo "poeta da morte", porque não amava a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, ou melhor, na sua fatalidade.
Quero, entretanto, antes de concluir este artigo, oferecer a gente ledora dois sonetos do poeta pouco conhecidos. O primeiro, em que ele idealiza e espiritualiza tão encantadoramente as forças universais, é o seguinte, por ele intitulado "La mento das cousas":
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!
E a dor da Força desaproveitada,
— O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...
E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
O segundo soneto que citarei será o derradeiro, chama-se “Último Número”; Fê-lo o poeta pouco antes da sua morte. É um soneto cabalístico, não há negá-lo. É sibilino. Que será o “último número”. Será a última vibração do seu ser em prol da Beleza? Será o último transporte das suas faculdades em direção à sua companheira – a Poesia? Será a sua derradeira aspiração a objetivar na angústia de uma estrofe todo o infinito que ele trazia dentro de si? Pode não ser nada disso e pode ser tudo isso ao mesmo tempo...
Enquanto ao soneto, ei-lo aqui:
Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Ideia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.
Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora