Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
Ele mesmo, pois, era o primeiro a reconhecer a dificuldade de justapor a palavra à grandeza de uma ideia, portanto, a re-conhecer também a imperfeição da sua obra
O autor da "Eu" era um caso realmente curioso, quase dizia, singular na literatura brasileira.
Senhor de uma cultura científica superior a sua idade e ao meio em que estudou; sabendo versificar com elegância e brilho; possuindo uma alma verdadeira de poeta e de idealista; era um monista convencido, pelo menos no princípio da tua vida. Via-se que a literatura demasiada de Haeckel e Spencer deixara-lhe um sulco profundo na inteligência.
No mundo ele via sempre as combinações cósmicas, as alianças elementares, as convulsões sísmicas. as revoluções telúricas e siderais, o amálgama de todas as forças latentes do Uni- verso, submetidas à fatalidade das leis físicas « biológicas e tendendo para a harmonia e unidade da Vida.
Era nesse materialismo que ia buscar os motivos da sua arte, fecundando-o com o seu idealismo tropical e vendo lutas e combates onde a ciência, através dos seus óculos autoritários, descobre apenas leis, princípios, fórmulas e equações.
Nem sempre o seu amor à "realidade" aparente dos fenômenos lhe dava as expressões mais felizes. Mais de uma vez o seu materialismo o fez deslizar inconscientemente em expressões brutais e imagens rebarbativas, por vezes absolutamente intoleráveis. Não as apontarei.
Entendo que a crítica não deve ser confundida com os gabinetes de anatomia, nem foi feita para ostentar monstruosidades. A sua missão é apontar para a Beleza, cultuando o heroísmo daqueles que souberam objetivá-la, principalmente em um meio ingrato e inóspito como o nosso, em que os gelos polares da indiferença, quando não as garrochas do sarcasmo, são o galardão que obtém os que nasceram marcados pela fatalidade dos sonhos e das obstruções. Crítica sistematicamente demolidora façam-na os hepáticos, os hipocondríacos, os invejosos e os despeitados.
O que torna extremamente destacado no seu meio este poeta é a ausência absoluta da tecla erótica no órgão magnífico da sua inspiração. Não cria no amor. Por isso não o decantava. Fenômeno inexplicável num homem nascido sob as ardências do nosso clima bárbaro e numa terra em que o amor ê a nota predileta da musa indígena.
Não que se deva condenar a poesia nacional por isso, uma vez que o amor ainda persiste em ser a aspiração máxima do homem, na sita busca incessante das "afinidades eletivas" para perpetuar-se na espécie. Mas a verdade é que, como observa Sully-Prudhomme no seu "Testament poétique", já antes de nós tantos outros têm cantado esse motivo do amor, que é difícil produzir criações dignas de nota em tal assunto. Desde que o lirismo despontou no Hélade, pelas idades remotas em que tentava os seus primeiros passos com os trenos, peans e himineus, desde esses tempos, anteriores a Píndaro, até hoje, a humanidade canta as dores produzidas pelo espinho de que falou Teócrito. E como essas dores são sempre as mesmas, a inspiração não muda.
Restavam aos poetas outros motivos de arte-. Deus e o mundo, o primeiro com as suas sugestões místicas e sombrias, o segundo com os seus deslumbramentos pagãos.
Deus já foi suficientemente cantado em todos os tons pelos místicos, pelos simbolistas, pelos decadentes, pelos próprios líricos. O mundo tem sido cantado, mas nos seus aspectos exteriores, nos seus fulgores superficiais, no brilho dos astros (com exceção da lua, que essa é sempre pálida, corno os treponemas), na verdura das seivas, no azul dos mares, no multicolorido das flores, na monotonia sempre nova das formas femininas... Era preciso canta-Io agora nas suas lutas interiores, animando os combates dramáticos da sua evolução orgânica da mesma forma que se dera uma vida e um corpo de imagens aos dramas do coração. Daí, dessa descrença em relação a Deus e dessa saciedade em relação ao amor, nasceu uma nova forma de arte, uma nova modalidade de poesia, que, na França, elevou tão alio Sully Prudhomme, e que, no Brasil, teve eco, sonoro mas transitório como todos os ecos, na inspiração cientifica do sr. Augusto de Lima.
Ora, Augusto dos Anjos, que, segundo parece, não cria em Deus, pelo menos como o entendem os teólogos, só podia cantar a matéria, Idealizando-a, revelando-a sob uma sábia, rutilante e sonora combinação de palavras tão bem ritmadas que adquiriam cor e movimento.
Dirão talvez que a sua filosofia era avelhentada, que ele era um sectário de Haeckel e de Spencer, quando há tanta coisa nova e digna de ser decantada. Mas a verdade (e parece certa que ela existe nas teorias evolucionistas) não tem idade. Não envelhece nunca. E eu não sei qual será mais novo: se um poeta que canta os velhos símbolos clássicos ou românticos, ou se um outro que decanta os símbolos que a ciência descobriu, há uns cinquenta anos. Desde que Lamarck, Buchner, Haeckel, Spencer, Darwin e outros da mesma escola estabeleceram em bases sólidas as suas teorias, até hoje, ainda não surgiu nenhum rumo novo apontado aos estetas, aos críticos e aos pensadores pelos homens da ciência de observação e experiência. Pelo contrário, o que se vê são tentativas para galvanizar a metafísica, feitas por filósofos de salão, como Gerhardt Hauptmann qualificou há pouco tempo o Sr. Henry Bergson, cujas obras, graças a Deus; acabam de ser postas no índice pela respectiva Congregação. Praza aos céus que a condenação nominal da "Matéria e Memória", "Dados imediatos da consciência" e "Evolução criadora" não sirvam de reclamo para o seu intolerável autor...
Augusto dos Anjos era um "monista-evolucionista-transformista".
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Mais adiante, num belo terceto final, reconhece a unidade substancial do Universo:
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
No “Último Credo", a sua profissão de fé evolucionista é insofismável:
Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular eu que ontem fui!
E, todavia, seria engano manifesto supor que este poeta, por ser materialista em filosofia, fosse material nos senti- mentos. Era um idealista na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo. Só quem a conheceu pessoalmente é que pode, sob este aspecto, julgá-lo com absoluta isenção de ânimo.
Magro, de uma magreza ascética, que lhe dava ao corpo uma aparência por assim dizer fluída; como eis próprio confessa num soneto:
Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos