As Lendas Da Deusa Mãe. Pedro Ceinos Arcones. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Pedro Ceinos Arcones
Издательство: Tektime S.r.l.s.
Серия:
Жанр произведения: Социология
Год издания: 0
isbn: 9788835413738
Скачать книгу
Introdução

      Qualquer pessoa que conhecer as literaturas das minorias do sul da China descobrirá muitas obras onde a protagonista é uma deusa ou divindade feminina. Seja dedicada à criação do mundo (sozinha ou acompanhada de uma divindade masculina), à da raça humana, ou à instrução de uma humanidade ou de seus ancestrais nas noções básicas da cultura neolítica (caça, agricultura, pecuária), as divindades femininas desempenham um papel central na origem e no desenvolvimento da humanidade.

      Nos últimos tempos foram publicados muitos trabalhos que defendem o caráter matriarcal de boa parte das sociedades estabelecidas antigamente no território da Europa e do Oriente1, caracterizadas pelo culto à deusa em suas diversas manifestações: como criadora do cosmos e da humanidade, como iniciadora nos segredos da existência e como renovadora do mundo alternando entre a vida e a morte, permitindo a continuidade de tudo o que existe. Esse é um assunto que, de nenhuma forma, obteve unanimidade entre a comunidade acadêmica, mas que permanece no centro dos debates com evidentes conotações políticas.

      Precisamente por ser um assunto em debate permanente, e pelas consequências que pode ter na vida atual, considerei necessário fornecer alguns fatos relacionados com os povos da China.

      Meu interesse pela cultura das minorias na China me levou a conhecer a existência de sociedades como a dos Moso, onde a herança é transmitida através da linhagem feminina e a vida social é organizada em torno das famílias matrilineares; a dos Jino que tiveram líderes mulheres até poucas gerações atrás; a dos Yi, também com várias autoridades femininas; ou a dos Lahu com a sua evidente igualdade de gênero. Essa série de fatos me levou ao questionamento se seria possível estabelecer uma relação cultural, ao menos hipotética, entre as sociedades matriarcais do antigo Ocidente, e as do presente ou do passado recente documentado em fontes históricas do Extremo Oriente, na qual o papel predominante era desempenhado pelas mulheres.

      Aprofundando um pouco mais na cultura desses povos indígenas da China, encontrei diversos mitos, lendas, fatos históricos, rituais e costumes que sugerem que, em um passado mais ou menos distante, as mulheres ocupavam uma posição social de destaque. Entre seus mitos, me chamou particularmente a atenção os diversos relatos que destacam o papel criador ou civilizador da mulher, bem como os que descrevem de forma detalhada como a mulher perdeu esse papel dominante nessas sociedades.

      Conforme eu ia descobrindo novos mitos que reforçavam o papel da mulher nas sociedades indígenas da China, ia aumentando meu desejo de encontrar outros mitos semelhantes em povos diferentes. O resultado dessa pesquisa um tanto obsessiva foi que acabei reunindo muitas histórias interessantes que, abrangem os povos que vivem em diferentes regiões da China, e transformam a mulher na protagonista da história. Dessa forma, o que era no início somente um esforço para documentar a presença feminina na vida das minorias, que deveria incluir também os rituais, costumes e descrições histórias, foi crescendo tanto, que me pareceu apropriado traduzir e apresentar esses mitos, enquanto sigo pesquisando os traços dessas sociedades matriarcais da China antiga na cultura das minorias da China moderna.

      Ao deixar de lado, temporariamente, o trabalho de pesquisa e substituí-lo pelo de tradução entendi que o interesse por essas histórias é multifacetado: primeiro porque apresentam ao leitor uma série de mitos, a maioria nunca traduzidos em nenhuma língua ocidental; segundo porque permitem vislumbrar alguns dos temas mais comuns nas mitologias dos povos da China (a criação do mundo, o dilúvio, o casamento entre irmãos, a aparecimento de diversos sóis, etc.); terceiro porque abrangem regiões geográficas tão distantes que permitem validar, ao menos regionalmente, os temas do leste da Ásia; quarto, por sua homogeneidade no tratamento positivo das divindades femininas que contrapõe outras histórias místicas onde elas desempenham um papel totalmente negativo, e quinto porque em uma sociedade que ainda trata de forma hostil as mulheres, com resultados trágicos em muitas ocasiões, qualquer trabalho que vise reivindicar sua importância, pode se tornar uma chave importante destinada a reverter a situação atual.

      Esse trabalho não é extenso, as histórias aqui apresentadas podem ser consideradas apenas uma pequena amostra da vasta mitologia feminina dos povos da China. Há muitos mitos que ficaram de fora: seja por serem muito extensos, ou por serem muito semelhantes a alguns mitos incluídos, pela sua linguagem simbólica complexa de difícil compreensão para o leitor, ou por não estarem traduzidos em chinês, ou não ter sido encontrada nenhuma versão apesar de tê-los visto em citações ou leituras de resumos, ou porque a intervenção das personagens femininas, mesmo que relevantes, ocupa uma parte relativamente pequena da obra, e não queríamos incluir fragmentos e histórias incompletas.

      Esperamos, contudo, que essa obra ajude a preencher uma lacuna em nosso conhecimento sobre a China, sobre seus povos indígenas, e a existência no passado de sociedades matriarcais.

      Agradecimento: Quero agradecer ao apoio contínuo que recebi da minha mulher durante esse trabalho, Wei Hua, esclarecendo pacientemente minhas incontáveis lacunas culturais e linguísticas, bem como as sugestões feitas por Roger Casas que, sem dúvida, contribuíram para melhorar essa obra.

      Nestas páginas pretendemos apresentar uma estrutura que enquadrará toda a importância dessa obra. Para isso, vamos compartilhar uma série de informações que para alguns leitores pode parecer um pouco distante e exóticas. Nesse sentido, mencionaremos os diferentes povos que habitam a China; apresentaremos brevemente as teorias sobre a existência de deusas arcaicas e sociedades matriarcais no Ocidente; demonstraremos a importância da cultura nas minorias da China para conhecer os aspectos da antiga cultura chinesa; recordaremos o valor dos mitos para conhecer o caráter de uma sociedade; e como corolário, evidenciaremos a capacidade dessas histórias de nos fazer refletir sobre os cultos femininos da China antiga, as sociedades matriarcais daquele país, o debate atual sobre as sociedades matriarcais antigas, e a importância da história para melhorar o desenvolvimento humano da nossa própria sociedade.

      1. Os povos da China

      Estão incluídos na presente obra quarenta mitos, lendas e contos populares, no qual as deusas ou divindades femininas são as protagonistas. Todos eles são parte do patrimônio cultural dos povos que vivem na China, mesmo que, às vezes, eles se estendam além das suas fronteiras.

      A China oficialmente se define como um país unitário e multinacional, composto pela maioria Han, e 55 minorias nacionais. Esse conceito politicamente inventado, mesmo sem precisamente equivaler a realidade humana do país, vem tomando forma apoiado pelo poderoso aparato propagandístico nacional, resultando em tornar cada vez mais reais as categorias étnicas inicialmente imaginárias.

      A maioria Han, aproximadamente 93% da população, os próprios chineses, os mandarins como são chamados alguns, não podem ser considerados um grupo étnico ou nacional homogêneo, porém foram constituídos por uma amálgama de povos que ao longo da história foram aceitando características mínimas comuns da cultura chinesa. As diferenças entre os considerados chineses Han são ainda enormes, tanto no aspecto físico (com várias linhagens humanas distinguíveis a olho nu), linguístico (com “dialetos” mutuamente ininteligíveis), cultural (decorrente não só da adaptação à terra, como da cultura ancestral dos povos que habitavam as diferentes regiões que mais tarde passaram a fazer parte da China) e religioso.

      O termo “minorias nacionais” é extremamente equivocado, porque de fato só indica o não pertencimento à maioria Han. E nesse emaranhado, onde tudo parece caber, se incluem povos como os Mongóis, Dai, Uygures ou Tibetanos, com culturas seculares tremendamente desenvolvidas, população de milhões de pessoas, e estruturas políticas próprias, incorporadas pelos altos e baixos da história durante os últimos séculos na China, e outros como os Dulong, Loba, Jino ou Hezhe, que contam apenas com uma população de uns milhares de pessoas, vivendo em algumas poucas aldeias geralmente em uma única região.

      Sim, a própria utilização do termo