Qualquer outra sensação de surpresa, admiração e até confusão, seria uma decepção para mim, porque já a vivi, além do efeito momentâneo que recebi quando estava presente do que me surpreendeu, nada mudou em mim. Continuei sendo o mesmo que antes daquela visão, com meus defeitos e virtudes, sem transcender para além de tudo o que conheço e sinto, tudo o contrário, ao que espero nesta cidade.
Talvez seja confiar demasiado numa construção tão antiga, é provável que eu tenha de me contentar em ter uma boa estadia e que não tenha problemas, como me aconteceu em alguma ocasião, mas, há que dizer tudo, nunca foi culpa minha, eu estava simplesmente no lugar menos indicado no momento mais inoportuno.
Ainda que isso, evidentemente, nunca tenha convencido as autoridades policiais ou judiciais, por isso tive de visitar em mais do que uma ocasião as paredes frias e húmidas da prisão, onde a boa companhia de celas era escassa, sendo bêbados, perturbadores ou reincidentes, ou os três ao mesmo tempo.
Foi um difícil aprendizado de humildade que eu tive que passar quando fui injustamente tratado, preso e mantido contra a minha vontade por dias até que o julgamento fosse realizado e eu fosse libertado, mas enquanto isso eu estava sujeito a condições tão precárias que não desejaria isso ao meu pior inimigo.
Mas por estranho que pareça, foi nesses sombrios exílios, precisamente na quietude da noite quebrada apenas pelo vaguear do carcereiro para verificar se tudo está em ordem ou pelo comentário vil de algum outro prisioneiro reclamando de seu confinamento.
Na escuridão da minha pequena sala emprestada, iluminada apenas pelo reflexo da lua cheia que é introduzida como um hóspede inesperado entre as grades de uma pequena janela no topo da cela, é então que percebi que a nossa passagem pela vida tem de ser algo mais do que uma sucessão desorganizada e por vezes arbitrária de momentos de alegria ou tristeza.
Como eu acredito que aconteceu com todos eles, eu recebi muitos paus ao longo dos anos, mas também gostei, me diverti e compartilhei minha alegria com amigos e familiares, e suponho que ainda terei muitos bons e maus momentos para viver.
Mas algo dentro de mim se quebrou na primeira noite que tive que passar encolhido em um canto daquele quarto úmido, onde eu enfrentei solidão forçada, sem ninguém ao meu lado para me apoiar ou mesmo me ouvir, assustado com a idéia de não poder acordar no dia seguinte àquela terrível experiência que superou qualquer pesadelo que eu tivesse tido antes.
Pensando nisso, a minha vida não era tão diferente da dos outros, talvez um pouco mais agitada e comovente, comparável à de qualquer marinheiro que visite vários portos, à dos pilotos de aviões que por vezes amanhecem todos os dias num país diferente, ou à de um soldado que vai onde a sua pátria o exige, Seja para impor a paz ou para participar em missões humanitárias, profissões que, a longo prazo, tornam difícil recordar todos e cada um dos locais visitados, nem sequer é possível recordar todos os bons momentos partilhados, nem as pessoas que se conhecem, sejam colegas, amigos ou qualquer outra coisa.
Talvez se eu tivesse nascido num desses grandes e inóspitos desertos, que surgem em quase todos os continentes como cogumelos que recordam a fragilidade do ecossistema em que vivemos e a necessidade de cuidar de um bem tão precioso como a água, talvez eu tivesse tido este tipo de experiência muito antes.
Se tivesse sido um nativo do deserto do Saara, outro berbere, um daqueles que atravessam as dunas sem fim, sob um sol de justiça, às vezes sem outra companhia senão a do incessante vento escaldante que caprichosamente redesenha a paisagem, seguindo caminhos que não existem mas se cruzam há gerações, fazendo caminhos com as pegadas dos dromedários, instantaneamente apagada pela brisa silenciosa que silencia a voz afogada do tempo, orientada apenas por aquelas estrelas estáticas e luminosas, e pelas belas histórias contadas de caminhante a caminhante em que se observa os lugares para abastecer-se de água ou onde se abrigar em caso de encontro com uma tempestade de areia.
Sendo assim, teria a oportunidade de experimentar, que eu não me sentiria diferente do resto, mas sim o contrário, estaria mais ligado ao mundo que me rodeia, aceitando a natureza tal como ela é, sem questionar por que acontecem certos acontecimentos, e os outros pelo que são e não pelo que possuem, sem fazer distinções entre países, raças ou religiões.
Quando você anda pelo mundo tanto quanto eu, percebe que o que une a humanidade é sua capacidade de se reinventar continuamente e que muitas vezes nos limitamos a essas fronteiras, às vezes tão absurdamente inventadas que dividem uma população ou um vale em dois, transformando em inimigos os habitantes que até aquele momento eram família e vizinhos.
Ou a linguagem, não haverá uma invenção pior do que a linguagem que separa e divide, que impede a comunicação fluida, que confunde e obstrui o processo de compreensão? Quantas vezes eu já vi outras pessoas sofrerem por não serem capazes de se comunicar adequadamente, tentando gesticular para para se explicarem, injustamente detidos, ou sofrendo a indiferença e o desprezo daqueles que não os compreendem?
Quando você quer dizer alguma coisa e os outros não te compreendem, turistas, visitantes, imigrantes ou exilados têm de enfrentar a nova realidade, vendo-se forçados a aprender um novo idioma como meio para sobreviver, e não apenas para poder encontrar um trabalho.
Para mim não há pior do que a invenção desses dialetos que surgiram como castigo pela arrogância humana, pelo menos é assim que os Livros Sagrados os recolhem quando se lembram com vergonha do que aconteceu com a torre de Babel, que seria a maior construção da humanidade, que chegaria com seu cume à abóbada celeste e ficou inacabada como símbolo da dissolução desse povo, que se acreditava ser tão superior.
Seja qual for a origem das línguas diferentes, estas ao longo da história, em vez de servir para comunicar-se melhor, separam e dividem comunidades em guetos, impedindo a troca de ideias e experiências fluidas, chegando a confundir e dificultar o processo do entendimento, em prol de um falso modernismo e ideal de diferenciação e independência.
Apesar de terem sido feitas muitas tentativas para ultrapassar estas diferenças, tentando dominar uma língua sobre as outras, durante muitos anos o inglês tem sido a língua dominante a nível comercial, enquanto o francês, em termos de diplomacia e relações entre países, tem sido a língua dominante. Inclusive chegou-se a criar uma língua que incluísse uma boa parte das línguas ocidentais existentes, com a ideia de substitui-las todas, estabelecendo assim uma língua única e universal, o esperanto.
Um belo sonho de unidade sob uma única língua que procurava facilitar a comunicação entre os povos, evitando assim conflitos, disputas e invejas, conduzindo ao intercâmbio e à compreensão, criando, em última análise, uma sociedade onde todos pudessem compreender, independentemente do lugar, raça ou religião de origem.
Um sonho que ficou no esquecimento, presente apenas aos mais nostálgicos e que poucos se empenham em manter vivo, com a esperança de que um dia, aquilo que nos une, superará o que nos diferencia e nos separa, e que criou tantos problemas e dificuldades no que diz respeito à convivência.
Quantas vezes vi pais sofrerem com seus filhos, detidos nas fronteiras por quererem acessar o que entendiam ser um mundo melhor para sua família, apenas por não serem capazes de se comunicar adequadamente, tentando gesticular para se explicarem, presos injustamente enquanto sofriam a indiferença e o desprezo daqueles que não entendem ou se importam em entender a sua situação.
Ou profissionais altamente qualificados que se mudam para outro país e têm de recomeçar a sua vida profissional, assumindo empregos abaixo do seu potencial e que nunca pensaram que poderiam desenvolver por serem considerados demasiado simples e desmotivantes, e tudo porque não dominavam a língua do país de acolhimento.
É o que acontece com turistas,