Estes pensamentos acompanhavam o longo caminho que parecia não ter fim.
Mas nada tinha fim naquele dia: nem o palrar submetido dos passarinhos, ou o calor das áridas colinas e muito menos o suor que pingava implacável e lento da minha testa. Mas continuava para frente, impelido pelo único ardente desejo que finalmente ela virasse e durante um único instante dirigisse para mim o seu olhar. De repente, quase importunada pelo barulho dos meus passos, ela virou: colhi um olhar sanguinário e aguçadas feições de fuinha. Cruel e sanguinária, pois! Mas o seu lábio tremeu de medo e eu experimentei outra vez a coragem de quem se sente o mais forte. Reparei-lhe eu também, demoradamente, desejoso e atrevido, derramando outra vez nos meus olhos os pensamentos proibidos durante muito tempo adormecidos. Mas não avancei um passo, possuído pelo inconsciente receio que aquela fosse uma visão dum instante, uma miragem perseguida por uma vida que por uma única imprudência pudesse desfalecer. Sentia de ter uma extrema necessidade de afundar nela, de sentir o calor da sua pele e a doçura da sua boca. Tive a vontade de feri-la, de apertar aquelas ancas leves e dissolvê-las entre os dedos, e colocar os meus dedos nos seus seios e depois arrancar-lhos, para pisar e destruir algo bastante precioso e frágil para não ficar furioso e dar cabo o meu coração.
Ela estava ali, firme, e não fugia. E por acaso por que deveria? Desconhecidos um ao outro e fixos num único pensamento, ninguém de nós os dois moveu-se, e ficamos a repararmo-nos como alunos irrequietos à espera do som duma campainha que não chegava por ventura. No fim moveu-se e eu continuei atrás dela. Era talvez cúmplice dum misterioso subentendido escondido nos seus olhos. Desorientado e perdido segui o ligeiro ritmo dos seus batimentos, o prazer que transpirava da sua pele e a obscura voluptuosidade dos seus sentidos.
Retomamos desta forma aquele eterno vagar entre campos e colinas, e o céu parecia o mar, e todo cheiro prometia tempestade.
Acompanhava-me um presságio de morte que de repente me assolou a alma e não pareceu mais a abandonar-me. E eu, que nunca tinha amado o calor do meu corpo, adverti-o com macabra veemência, quase como se estivesse despertado por vingança do longo esquecimento a que eu mesmo o tinha condenado. Eu, que nunca tinha amado uma mulher, agora abaixaria para pedir, atirar-me-ia impulsivamente de joelhos em frente daquelas amáveis ancas implorando uma hora de piedosas e amáveis carícias. Mas era pois eu aquele homem que tivera medo de amor, e por isso tinha-se confinado para sempre nas certezas dum destino irrevogável, num trabalho uniformizado, negando para si próprio o calor da lareira doméstica por pura covardia? Eram meus, todos aqueles pesados anos nos ombros em que tinha esquecido de ter sido criança, e por isso abominava ao pensamento dum toque na testa e do sorriso de pequeno amante dum recém-nascido? O que tinha feito da minha pobre vida se não um fato bastante apertado onde por pouco encontrava lugar sozinho?
Sepultado por estes pensamentos dei-me conta que tínhamos chegado nas proximidades duma casa, e que a mulher estava enfim perdida. Reparou-me e eu permaneci fora, numa inútil espera dum convite que não chegou por acaso. Parado na sua porta não sucedeu nada naquele dia, e nem sequer naqueles sucessivos, e eu fiquei em pé a respirar o poeirento ar dos campos até quando o sol ficou incandescente, e a poeira queimou-me os pés e um impetuoso vento obrigou-me a voltar aos meus passos.
A partir daquele dia vivi o terror de mim mesmo, toquei com a mão a inutilidade da minha vida vazia e constatei com amargura o desmoronamento das minhas ilusões. De repente deu-me uma repulsa a minha pele leve de velho. E percebi finalmente de não ter por acaso amado, de ter escolhido com feroz teimosia e percorrer sozinho esta passagem na terra, absorvido em dar valor àquilo que valor não tem, se não aquele imaginário e inconsciente da vaidade dos homens.
Seguindo um dia aquela mulher fui durante uma hora eu mesmo: agora voltei à minha vida, à rua em declive que me levará ao seu possível fim.
Sei que nunca serei feliz; mas talvez conseguirei convencer-me de não ter falhado para repreender-me e péssimas escolhas por renegar. Estenderei um véu na minha alma como fazem todos e percorrerei a linha de demarcação do tempo justificando cada minuto o meu mau acto. O esquecimento é tudo aquilo que desejo.
Mas agora sei caminhar no vazio, sem esperança e sem amor.
MÃE
Branco
.
Não é verdade, mãe, o que me dizia da vida: que todos os dia s são iguais e que vagamente o sol ilumina um mundo ofuscado pelo ódio. Se da minha parte é lícito a recordação posso dizer-te que já desde então amava o que não me foi dado, e que amargamente desejava aquela existência que tu me negaste.
Desde o primeiro instante onde percebi que ali estava, ainda perdido na eternidade do meu infinito, tão confuso no limite inviolável entre a vida e a morte, senti o peso dos teus remorsos sobrecarregar-me nos ombros e uma vez sem som repelir-me distante do mundo. Tinha apenas nascido e uma faísca de repúdio acendeu-se no meu coração e me queimou. Então uma dor densa e indomável escavou-me dentro uma angústia sem lágrimas, enquanto no meu coração já acariciava-me a ideia de ser teu filho.
Não sabia não agradar-te, ainda que com terror reparavas a tua imagem no espelho, ou que tremias ao único som da palavra “mamã”. Não percebia o por quê da minha existência se tu não me amavas, e não me dirigias por acaso uma palavra amiga. Sei apenas que esperava e sofria, e adormecia chorando entre os horríveis fantasmas do meu temido destino. Envolvido numa ténue neblina não conhecia as injustiças e as humilhações do teu mundo, todavia o teu choro já era notável para mim e nele, como uma doce canção de embalar, encontrava o meu repouso. Tinha aprendido a reconhecer a tua voz, e a partir da escuridão consumia as minhas forças na tentativa de entender-te e de encontrar um ponto firme no meu incerto universo.
A tua parte exterior, o teu doce corpo, os ruídos alcançavam-me submissas. Mas era o batimento do teu coração que gostava de ouvir, tão misterioso e absorvido, e do seu único som nutria-me à espera que todo o meu corpo se formasse. E enquanto o sangue começava a escorrer-me as veias e meus olhos fechavam-se, esperando de abrir-se de novo diante de ti mais tarde, empregava a eternidade do meu tempo a imaginar o teu rosto e a fantasiar sobre a vida que teria tido, questionando-me se teria sido boa ou não. Era tão doce dormir sobre o teu seio e perceber a partir do teu ventre o bom aroma das flores, e escutar pingar intensamente a chuva nos vidros, e ver as horas passar embora estavas sempre triste e as tuas únicas palavras falavam-me de morte. O que sabia da vida? Nada. Todavia a amava e não desejava que entrar ali, e medir-me como homem nas minhas acções diante a presença de Deus.
Mas tu agrediste-me com os teus discursos: que mesmo uma galinha come os seus ovos, que todos os animais matam os filhos que não podem nutrir. Que o peixe grande come o peixe pequeno e que não há espaço para as ovelhas num mundo de lobos. Que uma criança é criança só quando é nascido e que antes não existe nada.
Nada? Mas então eu o que era? Eu existia. E sabia da existência desde o primeiro instante, desde quando uma força indescritível me arruinou da minha letargia, e dividiu a minha primeira célula, e ordenou ao meu coração “Palpita!” aquela mesma força que impede aos planetas de chocar-se, que impõe ao mar de permanecer confinado no seu berço, no verão de fazer crescer o grão e dirige enfim o curso dos rios. Aquela força que separou a mundo do caos e forçou todo o universo a nascer.
Mãe, acreditas