A partir daquele dia ele não pintou e nem vendeu outros quadros, porque não sabe onde refugiou-se a minha alma: e desde então as árvores são cinzentas e os rostos dos anjos desaparecidos como fumo. Não sabe reconhecer a luz da noite, e não pode distinguir o fogo da água. E eu não posso mais dizer-lho, enfim, porque estou atrás da porta, onde ele não conseguirá por acaso ver-me. Agora choro eu, sentindo-me desgraçada na minha humana fraqueza.
Tudo acabou. E não tenho mais voz para confessar-lhe que lhas roubei eu, as suas cores...
A MUSICA DO DIABO
Vermelho
Dizia-se que aquela musica tivesse sido o diabo a compô-la.
Boatos, palhaçadas, superstições? Mas ele a tinha tocada mais vezes, aquela música, e não viu por acaso o diabo.
E certamente estava presente como se existisse, com aqueles chifres aguçados, o ar altivo e o chapeuzinho preto, como normalmente aparece, e então faz medo visto que sentes a sua ardente respiração nas costas. Mas uma vez que ele não tinha medo, ou melhor, aquela música parecia elevá-lo para cima onde o diabo, como se diz, não devia existir. E todas as vezes lhe chegava no coração uma paz profunda, que nenhuma coisa terrestre está em condições de dar.
Era aquele amor para o universo que lhe palpitava no peito, quando tocava, a encorajá-lo para continuar a fazê-lo; aquela estranha satisfação dos sentimentos. E então sentia-se bem, ou melhor ansioso para fazer o bem, embora no fundo a bondade o enfadava como o mal, e todas as vezes acabava por dobrar-se sobre si e daqueles sentimentos nao fazia nada.
Desta forma todos os dias: satisfeito de si mesmo e depois descontente, desejoso em concentrar-se sobre aquelas notas e cansado delas. E depois havia aquela estranha nausea para a gente e para si, depois de ter tocado, que não percebia mas que não podia prescindir de desejar. No fim habituou-se também a isto e não deu mais importância, considerando esta coisa como uma pequena consequência por sofrer para desfrutar uma dádiva preciosa.
“O diabo? Não existe!” – dizia, invocando como prova a sua mesma felicidade.
“Nunca roubei, nem feito mal a ninguém, e sou feliz. O diabo portanto não arrasta mais à perdição os mortais que gozam da sua companhia e das suas artes? Então, se é assim, bem-vindo demónio!”
E acariciava o queixo da sua jovem mulher grávida e pesada, sinal de que a criança era sã e crescia bem, mas um sinal da bênção divina. Mas a mulher morreu na primavera dando luz tal filho. Contudo e não é tão-pouco certo, visto que a criança permaneceu fechada no ventre da mãe morta até que uma desconcertante lamentação não impôs a ninguém de trazê-la para fora com uma cesariana improvisada. Tinha os olhos abertos e estava viva. E então todos pensaram que havia algo de maléfico nesta coisa, e que os prognósticos eram negativos. E quando enfim se descobriu que aquela estranha criatura não falava, podendo muito embora, e que se limitava a reparar o mundo com os olhos destacados e furiosos, pois todos deixaram-nos sozinhos, e o pai e a filha viveram na solidão todos os anos da sua vida.
No fim desapareceram, como se tivessem sido engolidos por nada, e todos disseram que tinha sido o demónio a pedir a compensação das suas almas. Mas eu sei como foi, visto que fui o único a decidir de misturar-me à sua desgraça, movido por um sentimento de piedade por aquela pobre criatura que crescia no nada, e a quem eu mesmo não podia que levar um pouco de comida. O que aconteceu assusta-me ainda, mas já sou velho e não me deu de temer nada se não a morte. Assim, meus amigos, oiçam as minhas pobres conversas e depois esqueçam-nas. De palavras já existe tantas.
Ele, portanto, continuava a tocar aquela musica, e afundando dia após dia no esquecimento. Tocando-a encontrava paz, iludindo-se de não ser mais o mesmo e fugindo para longe daquela realidade sem esperança… nenhuma coisa o interessava, salvo aquela musica: e quando compreendeu que não podia mais prescindir, mesmo odiando-a, começou a odiar a si mesmo porque a odiava. Não conseguia mais fazer nada: muito menos reparar aquela filha que derretia como uma vela, mesmo sendo sã, e que não proferia nenhuma palavra.
“Maldita musica!” – praguejava para si mesmo. E cada dia se prometia de novo de não tocá-la mais, sabendo bem que não teria hesitado um instante depois pegando de novo na mão os instrumentos para fazê-lo. E todas as vezes que aquelas notas subiam ao céu num mágico encanto no seu corpo desenhavam-se as sombras de esgotamento, aquela mancha escura que todos os dias ganhava mais forma e tornava-se pura, até quando explodiu com o seu medonho aspecto e ele não pôde mais não vê-la. Aquela pata pelosa que lhe tinha surgido no peito era o sinal do diabo, aquele demónio que não tinha por acaso temido e que não temia ainda mas cheio de horrores e de ilusões. Não havia fuga possível: aquela música era o acto de sangue que lhe tinha sugado enfim a alma e que o tinha concedido como uma dádiva ao obscuro senhor. Ele o tinha enfim tocado e o mantinha no punho, nutrindo-se da sua soberba e da falta de fé.
E a contaminação passava de homem para homem através das notas daquela música que solicita os sentimentos para o pecado que não se pode cometer mas que, no íntimo, mesmo por isto já cometeste. Uma peste silenciosa que cada criatura leva para uma outra, repetindo-se o ciclo até ao infinito. Então ele questionou-se quantos massacres tinha cometido, trazendo ao mundo aquela música. Quantas outras manchas esperavam para explodir, quantos pecados circulavam pelo ar à espera de serem colhidos. Tinha sido cego mas agora via e compreendeu que aquela musica precisava destrui-la de imediato, visto que havia ainda uma possibilidade de salvação que impedisse aos homens de seguir o seu próprio caminho dependia apenas dele. Levantou os braços para pegar a partitura… mas não pôde.
Aquela música ainda lhe dizia algo e o encantava, jogando uma fácil partida contra a vontade do homem vencido. Compreendeu num instante que não queria absolutamente destrui-la, mas pelo contrário tocá-la, uma vez que não há tentação mais forte para o ser humano do que aquele de arrastar à perdição o próprio irmão.
“Deves queimá-la” – sussurrou naquele momento uma vez às suas costas.
Era aquela filha muda que agora falava, e estava firme à frente dele, pálida e que sofre no rosto e toda a tremer.
“Deves queimá-la” – repetiu, destapando um seio. Também ali a mancha tinha ganhado forma.
Aquela pata que se tinha colocado no peito dela a tinha enfim tudo escavado e devorado, perfurando também o coração.
“Veja como estou reduzida. Deves queimar aquela música, e deves queimar a mim também.”
Então ele percebeu que não havia mais esperança nem tempo: amontoaram as poucas coisas que tinham na margem do mar e fizeram uma grande fogueira. Depois ele atirou-se ali sobre o corpo da sua filha e por fim aquela música. E esperou silenciosamente que o fogo se apagasse totalmente, reparando os últimos fragmentos da sua vida a desaparecer com ele.
E, quando tudo foi efectuado, sentiu-se velho e cansado: não porque tivesse perdido a sua única filha, mas porque não podia mais tocar a sua música.
E quando este pensamento ficou claro e nítido na sua mente a mancha no peito começou a queimar-lhe e a sufocá-lo numa mordaça, de maneira que o seu corpo ficasse consumido e a carne devorada.
Assim regressou ao seu quarto e matou-se.
LOUCURAS
Cor de laranja
Vi-a e levei logo um golpe. Algo nela atraia-me e me repelia ao mesmo tempo, algo infinitamente doce e secretamente triste sobre uma boca da mulher e um sorriso de criança, quase que se estivessem reunidos nela uma mágica inocência e uma lânguida perversão. Mais a reparava mais me convencia que albergasse nela uma dupla natureza