“Eu não quero ir”, disse ele com suavidade.”Eu tive um sonho sobre ti. Eu sonhei…” Ele olhou para cima para ela com relutância, com os olhos cheios de medo.”… que tu ias morrer lá.”
Kyra sentiu um choque com as suas palavras, especialmente por ver o olhar nos seus olhos. Assombrou-a. Ela não sabia o que dizer.
Anvin chegou-se à frente e colocou sobre os seus ombros peles grossas e pesadas, aquecendo-a; ela levantou-se e sentiu-se dez libras mais pesada, mas estancou todo o vento e levou-lhe o frio das costas. Ele sorriu de volta.
“As tuas noites vão ser longas, e os fogos devem estar longe”, disse ele, e deu-lhe um abraço rápido.
O pai dela chegou-se à frente rapidamente e abraçou-a, o abraço forte de um lorde da guerra. Ela também o abraçou, perdida nos seus músculos, sentindo-se salva e segura.
“Tu és a minha filha.” disse ele com firmeza, “não te esqueças disso.” Depois ele baixou a voz para que os outros não conseguissem ouvir, e acrescentou: “Amo-te.”
Ela estava submersa em emoções, mas antes que ela pudesse responder ele rapidamente se virou e foi-se embora – e no mesmo momento o Leo gemeu e pulou para cima dela, empurrando o seu nariz contra o peito dela.
“Ele quer ir contigo”, observou o Aidan.”Leva-o – vais precisar muito mais dele do que eu, fechado em Volis. E de qualquer das formas, ele é teu”.
Kyra abraçou o Leo, incapaz de recusar uma vez que ele não iria sair do seu lado. Ela sentiu-se confortada pela ideia de ela a acompanhar, tendo sentido muito a falta dele. E também, dava-lhe jeito outro conjunto de olhos e ouvidos, e não havia ninguém mais leal do que o Leo.
Pronta, Kyra montou o Andor enquanto os homens do seu pai se separavam. Eles empunhavam tochas de respeito por ela ao longo da ponte, afastando a noite, iluminando-lhe um caminho. Ela olhou para além deles e viu o céu escuro, deserto perante ela. Ela sentiu excitação, medo, e acima de tudo, um sentido de dever. De objetivo. Perante ela estava a missão mais importante de sua vida, uma missão que tinha em jogo não só a sua identidade, mas o destino de toda Escalon. A aposta não podia ser maior.
O seu bastão amarrado sobre um ombro, o seu arco sobre o outro, Leo e Dierdre ao lado dela, Andor debaixo dela, e todos os homens do seu pai assistindo, Kyra começou a montar Andor numa caminhada em direção aos portões da cidade. Ela foi lentamente ao início, através das tochas, passando pelos homens, sentindo-se como se estivesse a andar num sonho, caminhando para o seu destino. Ela não olhou para trás, não querendo perder determinação. Soou baixo uma corneta tocada pelos homens do seu pai, uma corneta de partida, um som de respeito.
Ela preparava-se para dar um pontapé ao Andor mas ele já se tinha antecipado. Ele começou a correr, ao princípio em trote, depois a galope.
Em poucos instantes Kyra deu por ela a correr pela neve, através dos portões de Argos, sobre a ponte, em campo aberto, o vento frio no seu cabelo e nada perante ela a não ser um longo caminho, criaturas selvagens e a escuridão da noite a cair.
CAPÍTULO QUATRO
Merk correu pela floresta, tropeçando pela suja encosta abaixo, passando entre as árvores, as folhas da Floresta Branca a esmagarem-se por baixo de si enquanto ele corria por tudo o que tinha. Ele olhou para a frente e manteve na sua mira as nuvens de fumo distantes que preenchiam o horizonte, bloqueando o pôr-do-sol vermelho-sangue, e sentiu uma crescente sensação de urgência. Ele sabia que a miúda estava lá em baixo em algum lugar, possivelmente, a ser assassinada, neste preciso momento, e ele não conseguia que as suas pernas corressem suficientemente rápido.
A morte estava sempre a ir ter com ele; ela encontrava-o em cada curva, aparentemente todos os dias, da mesma maneira que outros homens eram chamados para casa para jantar. Ele tinha um encontro com a morte, costumava dizer a sua mãe. Aquelas palavras soavam-lhe na cabeça, tinham-no perseguido praticamente durante toda a vida. Eram as palavras dela exequíveis? Ou tinha ele nascido com uma estrela do azar sobre a sua cabeça?
Para Merk matar era uma parte natural da sua vida, como respirar ou almoçar, não sendo importante para quem o estava a fazer, ou como. Quanto mais ponderava sobre o assunto, mais repugnado se sentia, como se quisesse vomitar toda a sua vida. Mas apesar de tudo dentro dele vociferar para ele mudar, para começar uma nova vida, para continuar a sua peregrinação para a Torre de Ur, ele simplesmente não o conseguia fazer. A violência estava, mais uma vez, a convocá-lo, e agora não era o momento de ignorar o seu apelo.
Merk correu, as nuvens ondulantes do fumo estavam cada vez mais perto, tornando mais difícil a respiração, o cheiro do fumo a fazer arder as suas narinas, e um sentimento familiar a apoderar-se de si. Não era medo nem mesmo, depois de todos estes anos, a emoção. Era uma sensação de familiaridade. Da máquina de matar em que ele estava prestes a tornar-se. Era sempre o que acontecia quando ele ia para uma batalha – para a sua própria batalha particular. Na sua versão de batalha, ele matava cara a cara o seu adversário; ele não tinha de se esconder atrás de uma viseira ou armadura ou aplausos da multidão como aqueles cavaleiros extravagantes. Na sua opinião, ele estava na batalha mais corajosa de todas, reservada para verdadeiros guerreiros como ele.
E, no entanto, enquanto corria, Merk sentiu algo de diferente. Normalmente, Merk não se importava com quem vivia ou morria; era apenas uma profissão. Isso mantinha-o focado no objetivo, livre de ser emocionalmente perturbado. No entanto, desta vez, foi diferente. Pela primeira vez em tanto tempo quanto ele se conseguia lembrar, ninguém lhe estava a pagar para fazer isto. Ele agiu de livre vontade, por nenhuma outra razão senão porque tinha pena da miúda e quis corrigir as coisas. Isso tornou-o devotado, e ele não gostou da sensação. Ele agora lamentava não ter agido mais cedo e mandado-a embora.
Merk correu a um ritmo constante, não carregando nenhuma arma – e a não precisar de nenhuma. Ele apenas tinha no cinto o seu punhal, e isso era suficiente. De fato, ele podia até não o usar. Ele preferia entrar em batalhas desarmado: apanhava os seus adversários desprevenidos. Além disso, ele poderia sempre tirar as armas ao inimigo e usá-las contra eles. Isso deixava-o com um arsenal imediato onde quer que ele fosse.
Merk irrompeu da Floresta Branca, as árvores a dar lugar a planícies abertas e colinas, e foi recebido pelo enorme sol vermelho, sentado em baixo, no horizonte. O vale espalhava-se diante dele, o céu acima preto, como se zangado, cheio de fumo, e ali, em chamas, estava o que só podiam ser os restos da quinta da miúda. Merk conseguia ouvir a partir daqui os gritos alegres dos homens, criminosos, as suas vozes cheias de alegria, sede de sangue. Com o seu olhar profissional, examinou a cena do crime e imediatamente os detetou, uma dúzia de homens, os rostos iluminados por tochas que seguravam enquanto corriam para lá e para cá, deixando tudo em chamas. Alguns correram do estábulo para a casa, incendiando os telhados de palha com as tochas, enquanto outros abatiam o gado inocente, cortando-os à machadada. Um deles, ele viu, arrastava um corpo pelos cabelos através do terreno lamacento.
Uma mulher.
O coração de Merk acelerou quando se interrogou se seria a miúda – e se ela estava viva ou morta. Ele estava a arrastá-la para o que parecia ser a sua família, todos eles amarrados ao celeiro com cordas. Estavam lá o pai e a mãe dela, e ao lado deles, provavelmente, as suas irmãs, menores, mais jovens, ambas miúdas. Uma brisa deslocou uma nuvem de fumo preta e Merk viu de relance o longo cabelo loiro do corpo, emaranhado com a sujidade, e ele soube que era ela.
Merk sentiu uma descarga de adrenalina e desatou a correr pela colina abaixo. Ele correu para o lugar enlameado, pelo meio das chamas e do fumo, podendo ver finalmente o que estava a acontecer: a família da miúda, contra a parede, estava toda já morta, com as gargantas cortadas, os seus corpos pendurados flacidamente contra a parede. Ele sentiu uma onda de alívio quando viu que a miúda que estava a ser arrastada ainda estava viva, resistindo, à medida que a arrastavam para se juntar à sua família. Ele viu um bandido que aguardava a sua chegada com um punhal, e ele sabia que ela seria a próxima. Ele tinha chegado demasiado tarde para salvar a família dela – mas não tarde demais para a salvar