Ele parou por um momento, e perguntou: "E qual é a sua história?"
Herodotus corou. Depois de uma história como aquela, o que é que ele podia dizer? "O meu carro avariou-se em frente aqui à casa", respondeu ele, quase em tom de desculpa.
O velho olhou para ele por uns momentos com um sorriso quase imperceptível nos lábios, e acabou por se levantar. "Certo", disse, esticando o braço e dando uma palmada amigável nas costas de Herodotus. "Lembre-se, como Polly sempre diz, nada está perdido enquanto houver esperança." E foi-se embora.
Herodotus tomou mais um pouco do vinho e observou os convidados. Após alguns minutos, um homenzinho com um ar de fuinha, vestido com um fato cinzento e com uma camisa branca perfeitamente engomada e um laço vermelho ao pescoço, aproximou-se do sofá. Em vez de se sentar nele, deu a volta até estar por trás de Herodotus e inclinou-se para lhe murmurar ominosamente ao ouvido: "Sai daqui enquanto podes."
"Como?"
"Ouviste-me bem. Sai daqui antes que seja tarde demais", e afastou-se sem mais explicações.
Herodotus perguntou-se em que toca de coelho tinha caído enquanto via o homem afastar-se. Ele não tinha escolha senão ficar - a menos que quisesse caminhar oitenta quilómetros pelo calor escaldante do deserto.
Pelo meio da multidão andava descontraidamente um gato preto de pelo comprido e olhos dourados brilhantes. Com deliberação felina, veio até ao sofá, examinou Herodotus com atenção, e saltou-lhe para o colo; Herodotus afagou-o levemente. O gato não levantou objecções e começou a ronronar, dando-lhe palmadinhas nas coxas com as patas macias.
Polly regressou nesta altura, desta vez vestida com um body de lantejoulas com riscas verticais vermelhas e brancas e debruado a azul com estrelas também brancas numa fila vertical ao longo do peito e da anca. Os ombros, braços e pernas estavam nus, e nos pés trazia sapatilhas de ballet.
"Ah, encontraste o Midnight", sorriu Polly.
"Acho que ele é que me encontrou a mim", disse Herodotus.
"Estou a ver que estás habituado a ver as coisas de uma perspectiva felina."
"Já tive alguns gatos", admitiu ele.
"Isso agrada-me. Os gatos são a prova viva que Deus estava a brincar quando disse que não devíamos ter mais nenhum deus para além dele." Ela baixou-se e afagou por sua vez o gato, que ronronou ainda mais alto.
Polly saltou para o sofá ao lado dele, deu uns quantos saltos com toda a distinção e boas maneiras de uma criança de dez anos com excesso de energia, e acabou sentada de lado, de pernas cruzadas, a olhar para ele. O gato nem estremeceu. "E agora, do que é que havemos de falar?", perguntou ela.
Herodotus abanou a cabeça. "Não estou com vontade de falar. Só quero arranjar o meu carro e pôr-me a caminho."
A voz de Polly soou compassiva. "Estás com problemas, hein?"
"Eu disse que não queria falar sobre isso", disse ele num tom mais brusco do que tinha sido a sua intenção.
"Tudo bem", disse ela, agora a fazer festas ao gato. "Então podemos falar do meu tema favorito – a minha pessoa. Faz-me perguntas, vejo na tua cara que estás cheio delas. Pergunta-me o que quiseres. Estou muito bem disposta, e assim dou-te uma oportunidade única pela qual alguns homens dariam a própria vida."
Era óbvio que ela não ia deixá-lo em paz, por isso mais valia fazer-lhe a vontade. "Cultivas muitas flores aqui?"
Ela ficou espantada e confusa por alguns segundos. "Tenho de admitir que não me perguntam isso muitas vezes. Normalmente vêm coisas do género ‘qual é o sentido da vida’ ou ‘porque é que isto tinha que me acontecer a mim’. É verdade que tenho um canteiro no jardim das traseiras, mas não é maior do que os jardins de Versailles. Porque perguntas?"
"Bem, quando eu entrei disseste: ‘Bem-vindo à Estufa4’."
Polly riu-se; e o riso dela soava como um espanta-espíritos a tilintar numa brisa suave, um som que enchia a sala de brilho, que era a própria essência da alegria. "Não é ‘Estufa’, é ‘Casa Verde’. Por causa da cor."
"A casa é branca."
"OK, mas ‘Casa Branca’ já está ocupado5, topas?"
Herodotus fechou os olhos. Era como se o cérebro dele tivesse acabado de entrar num banco de nevoeiro. "Não sei se isso faz alguma espécie de sentido."
"Sentido? Não havia nada sobre ‘sentido’ no contrato. Népias. Nem sobre ‘justo’, já agora, nem mesmo nas letras miúdas. Eu li-o todo."
Herodotus estava a começar a achar que Polly vivia sozinha há demasiado tempo. Estava mesmo para se levantar e dizer que esperava lá fora quando o mordomo se aproximou do sofá. Era um homem alto de smoking, o cabelo a rarear e já branco nas fontes, que mantinha uma pose de superioridade e trazia uma bandeja de prata com canapés na mão direita. Ele baixou a bandeja com elegância para que Herodotus pudesse examinar o seu conteúdo e disse, com um sotaque britânico quase aristocrático: "Aperitivos?"
"Obrigada, James", disse Polly, pegando num canapé de aspecto invulgar e olhando para Herodotus. "Apetece-te alguma coisa?"
Ele olhou para a bandeja. Na maior parte das festas a que ele tinha ido tinha havido batatas fritas, ou Doritos e snacks do género, ou taças de frutos secos e miniaturas, mas nenhum destes canapés lhe era familiar. "Hum, o que é que recomendas?"
"Oh, são todos óptimos", disse Polly. "Eu é que os fiz."
Herodotus escolheu então um que parecia uma pequena flor vermelha e castanha numa bolacha. Experimentou dar uma dentada; combinava um sabor doce com um sabor salgado. "Isto é muito bom!", disse ele, enquanto acabava o resto.
"Bom, não precisas de ficar tão admirado", disse Polly.
"O que é?"
"Depois de semelhante resposta, não me parece que te vá dizer. James, não precisamos de mais nada."
"Com certeza, senhora." O mordomo endireitou-se e continuou a servir os outros convidados.
Polly observou Herodotus enquanto ele acabava de mastigar o resto do canapé e disse: "Onde é que íamos?"
"Acho que não íamos a lado nenhum."
"Já sei, tu estavas a fazer-me perguntas profundas e inteligentes. Vá, mal consigo esperar pela próxima."
Herodotus acabou o vinho para ganhar algum tempo e decidiu, com um suspiro, falar naquilo que estava a incomodá-lo; bem, numa das coisas que estava a incomodá-lo. Polly não parecia ofender-se com perguntas directas.
"Sabias", perguntou ele incisivamente, "que tens um boneco de neve no teu jardim da frente?"
"O McCool? Pensei que estivesse no quintal. Deve ter ido para o jardim para poder ver os carros a passar, ele gosta disso."
Isto deixou-o embasbacado. "Estás a gozar."
Ela fez um grande sorriso, um sorriso que iluminou a sala como um raio de luz. "Claro que estou, tonto", disse ela, esticando o braço e pondo-lhe a mão no joelho num gesto de simpatia. "O McCool não pode ir para lado nenhum, ele não tem pernas! Isso foi sempre o que me fez confusão com o Frosty, aquele boneco da canção, sabes? Como raio é que ele adorava dançar quando bonecos de neve não têm pernas nem pés? Mas a canção é gira6."
O toque dela deu-lhe no joelho um choque de... algo. Não era de calor, embora ele estivesse quente, mesmo com o ar condicionado; não era electricidade, embora ele sentisse todo o corpo num formigueiro. Nem era desejo, embora o que ela trazia vestido o deixasse muito consciente da sua feminilidade. Era... outra coisa qualquer, e era decididamente uma coisa boa.
Ele começou a dizer "Mas como...", quando ela o interrompeu.