Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: August Nemo
Издательство: Bookwire
Серия: Romancistas Essenciais
Жанр произведения: Языкознание
Год издания: 0
isbn: 9783955777036
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você vai errado. Olhe que eu não posso demorar-me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.

      O taverneiro, sem replicar, pôs o copo na boca, e, depois de haver sorvido alguns goles que lhe souberam a quássia ou jurubeba, restituiu-o ao rapazito, que o esvaziou quase de um trago.

      Então, sem cuidar de pagar a despesa, José saltou sobre a cangalha, pôs o cavalo a todo o galope e desapareceu no caminho como desaparece um raio na atmosfera.

      Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Timóteo. Vinha na batida de José, que havia cometido um roubo considerável na praça, tendo, para escapar-se, assassinado um caixeiro e deixado às portas da morte, com um sem-número de golpes, dois soldados que diligenciaram prendê-lo.

      Pertencem estas ao número das primeiras proezas do Cabeleira. Não contava ele então dezesseis anos completos. Perpetrava, entretanto, destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais hábeis e audaciosos assassinos.

      Não obstante o modo por que o tratara desta vez o jovem Cabeleira, nunca Timóteo ficara mal ou se arrufara sequer com ele. Quem não descobre a razão de tal segredo? O colono respeitava e temia o matuto. Por detrás, dizia àqueles de cuja fraqueza estava certo, que o José era uma oncinha que se estava criando e que era preciso, enquanto não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz, que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só tinha ele atenções e baixezas que bem denotavam os quilates do seu espírito.

      José cresceu, reformou, pôs-se de todo homem. Perdeu a cor terrena e pálida com que o vimos da primeira vez na taverna, e tornou-se robusto de corpo e bonito de feições. Cabelos compridos e anelados, que lhe caíam nos ombros, substituíram a penugem que mal lhe abrigava a cabeça nos primeiros anos.

      Timóteo fora testemunha de todas estas transformações. O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a vila a taverna dos Afogados. Esta taverna passara a ser um como entreposto onde ele depositava o que roubava com o pai, e mais tarde, com o Teodósio que viera associar-se-lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achara-se assim em condições de acompanhar dia por dia as diferentes faces, os variadíssimos sucessos de uma das existências mais admiráveis que se conhecem na carreira do crime.

      Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando o livrara da companhia da Chica achava-se Timóteo nos seus quarenta e oito anos. Agora orçava pelos cinquenta e cinco. Tornara-se-lhe o cabelo branco; destendera-se-lhe o abdome, caíram-lhe um pouco as faces, sumiram-se-lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.

      Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dois diziam-se amigos, e até certo ponto apoiavam-se reciprocamente, havendo a muitos respeitos entre ambos perfeito acordo de intenções e inteira comunidade de interesses.

      As barras vinham quebrando quando a canoa dirigida por Teodósio encostou na beira do Capibaribe, junto à ponte dos Afogados. Dentro em pouco a pingue messe da noite, colhida às custas de sustos, sangue e morte, passou para os esconderijos da taverna. Beberam em comum os quatro; celebraram todos a magistral façanha. Timóteo aplaudiu a. coragem do pai e do filho, e a finura e as mágicas do Teodósio.

      De repente este levou a mão à testa e correu como desesperado à margem. Os companheiros meteram mãos às armas e prepararam-se para o que desse e viesse.

      Timóteo, chegando à porta e estendendo os olhos pelo aterro dos Afogados afora, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar a inquietação do seu digno conviva.

      Só o Teodósio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras, olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabelos no auge do desespero. José dispôs-se a arrostar com o que pudesse acontecer e foi ter com o consternado amigo.

      — Que diabo tens tu, Teodósio?

      — O dinheiro, Cabeleira, o dinheiro!

      E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dor profunda, apontou o rio que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as águas azuladas em que se refletia o belo céu pernambucano que disputa a primazia ao céu de Itália.

      — O dinheiro que tirei das gavetas do armazém lá se foi no camarote da canoa! disse o Teodósio, fulo de pesar que se não descreve.

      — E que fim levou ela? interrogou José.

      — Fugiu, desapareceu! Lá se foi tudo pela água abaixo.

      Não acabava quando, ei-la que aponta movida por dois meninos que, tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado dela para brincarem como costumavam sempre que davam com alguma canoa sem dono. Pobres crianças!

      Tanto que os viu, Teodósio empalideceu. Cabeleira porém correu a encontrá-los aceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados, saltaram na margem os pobrezinhos, e fugiram, ao passo que a canoa, ficando solta, desaparecia novamente impelida pela enchente da maré.

      Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro, continuou a correr no encalço deles sem ter outra idéia que apanhá-los para arrancar-lhes das mãos o que considerava propriedade sua. Mas como sua cólera aumentou com a fugitiva resistência dos pequenos, atirou ele sobre o primeiro que lhe ficou ao alcance o facão com tanta certeza, que o pobrezinho, cravado pelas costas, caiu banhado em seu próprio sangue.

      Não parou aí então a fereza inaudita. José, achando limpas as mãos da vítima, lançou-se com encarniçada fúria atrás do camarada, o qual, tendo já ganho grande distância, e sentindo que era perseguido tenazmente, se lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pávidos, crendo escapar por este modo ao terrível assassino. Reconheceu, porém, que se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão diligenciava feri-lo com o facão.

      — Acuda, mamãe, que o homem me quer matar — gritou o menino das alturas aonde havia subido.

      — Ah, tu pões a boca no mundo, caiporinha? observou José. Pois vou tirar-te a fala em um instante.

      Um tiro covarde, cruel, assassino atroou os ares. Sangue copioso e quente gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do inocentinho, crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabeleira, veio dar-lhe novo testemunho de sua perícia na arte de atirar contra seu semelhante.[1]

      Quem estivesse com os olhos em Teodósio no momento em que Cabeleira correra atrás dos meninos, tê-lo-ia visto atirar dentro em uma moita de muçumbés e manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um pesado pacote que tirara do bolso. Neste pacote achava-se o dinheiro roubado ao lojista pelo astucioso ladrão que agora o furtava novamente aos próprios companheiros de rapinas, depois de haver concorrido, por sua trapaça, para a morte das inocentes criaturas.

      Quando se soube que Cabeleira estava na terra e tinha sido o autor do latrocínio, a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar à sua ferocidade.

      Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circunvizinhas. Outros, dos mais corajosos, fortificaram-se nas próprias habitações, contando que seriam assaltados pelos matadores.

      Felizmente estes demoraram-se no lugar unicamente o tempo que lhes foi preciso para porem em boa espécie os objetos roubados segundo usavam depois de suas depredações.

      III

      COMO nunca um mal vem desacompanhado, segundo muito bem diziam nossos maiores com aquela autoridade que, entre outros graves ofícios, não se lhes pode recusar na ciência da vida, ao grande contágio das bexigas, que todo o ano de 1775 e uma parte do seguinte levou assolando a província de Pernambuco, sucedeu uma seca abrasadora, mal não menos penoso senão mais funesto que o primeiro em seus resultados.

      Se por ocasião do referido contágio subiu o número das vítimas a tanto, que os cemitérios e as igrejas já não tinham espaço para lhes oferecer sepulturas, que diremos nós para darmos a conhecer, não unicamente os efeitos da peste, comum a todos os climas e a todas as regiões, mas juntamente com estes efeitos os da seca, flagelo especial de algumas