Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: August Nemo
Издательство: Bookwire
Серия: Romancistas Essenciais
Жанр произведения: Языкознание
Год издания: 0
isbn: 9783955777036
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em 1633 e denominado por estes Forte da Piranga e por aqueles Príncipe Guilherme em honra do príncipe de Orange. Ficava à direita da entrada da povoação, por detrás das primeiras casas. Foi demolido em 1813, pelo intendente da marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a camboa que contornava pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava.

      Timóteo estabelecera ali uma vendola ou bodega aonde ia ter o açúcar, a galinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objeto que era furtado pelos negros dos engenhos da redondeza. No exercício desta criminosa indústria comprava-lhes muitas vezes por dez réis de mel coado objetos de valor que revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros e almocreves que acertavam de entrar na venda.

      Timóteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher bem apessoada, ainda moça, metida a valentona, finalmente uma dessas mulheres que tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá cá aquela palha. Diziam as más línguas que nos primeiros tempos da sua vida com o colono ela lhe fora por diferentes vezes ao pêlo; e que, compreendendo ele que não podia fazer cinco montes, e renunciando à pretensão, que a princípio nutrira, de trazer sopeada a caseira, deixara esta também, por justa compensação de repetir o caridoso ensino com que o edificara logo depois de sua lua-de-mel.

      Uma manhã um rapazito descorado parou à porta da bodega, saltou do cavalo abaixo e mandou medir contra-metade de aguardente.

      — Olá, menino José. Muito cedo navega você hoje; disse Timóteo ao recém-chegado.

      — Parti de Santo Antão na madrugada velha, tornou-lhe o hóspede.

      Enquanto o taverneiro aviava o matinal freguês, o cavalo que jejuava desde a véspera pôs-se a devorar a grama do pátio e, sem consciência dos riscos em que se ia meter, foi cair muito naturalmente dentro da pequena roça da mameluca e começou a destruí-la mostrando tenção de dar conta dela.

      Mas ainda bem o primeiro jerimum não se havia derretido entre os poderosos molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou neste tamanho golpe com uma das estacas da cerca, que o pobrezito, dando às popas pelo meio do pátio, foi atirando os sacos aqui, os caçuás acolá, a cangalha além, e desembestou por fim, pela margem afora, em violenta fuga.

      Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a venda, e investiu com o inofensivo matutinho.

      — Amarelo de Goiana! gritou-lhe ela ao pé do ouvido. Não sei onde estou que não te ponho mole com este pau para te ensinar a amarrares melhor a tua besta esganada de fome.

      O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de falar e cujos olhos pareciam querer saltar das órbitas, respondeu-lhe sem se alterar nem mover:

      — Besta! Besta é ela.

      E, senhor de si qual se estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos lábios com o maior sangue-frio que ainda se pôde mostrar na taverna, onde as paixões se acendem com a prontidão do raio.

      Irritada por esta represália que a seus olhos pareceu condensar todo o desprezo do mundo, a mameluca não teve dúvida não, e levantou a acha para o rapazito.

      Tinha este deposto o copo sobre o imundo balcão quando pressentiu a arremetida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta pancada. A estaca bateu a meio no balcão, e metade dela voou pelos ares em estilhaços que foram quebrar as panelas de barro e as poentas botijas com que se achavam adornadas as sujas prateleiras da pocilga.

      Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José havia desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera cair redondamente no chão.

      Quis Timóteo acudir à companheira na apertada conjuntora que se lhe desenhou aos olhos com as negras cores de um desastre, ou vergonha para o lar e bodega onde nunca sofrera afronta igual ou que com esta se parecesse. Mas quando apercebia o ânimo para dar o arriscado passo, descobriu na mão de José uma faca de Pasmado que o reteve à respeitosa distância,

      Julgando-se José, à vista do agravo que recebera, com direito a público e estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para o terreiro, e aí com uma raiz de gameleira com que os meninos tinham brincado na véspera, começou a pôr em prática a mais edificativa sova de que nos dão notícia as tradições matutas.

      A mameluca tentou por diferentes vezes livrar-se das mãos do rapazito, espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam, pela dureza e pelo peso, manoplas fundidas de propósito para esmagar um gigante. Demais, José havia posto um pé no pescoço da Chica, e com ele comprimia-lhe o gasnete, tirava-lhe a respiração, afogava-a sem piedade.

      A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinário madrugadores, por infelicidade da caseira de Timóteo dormiram mais nesse dia do que tinham por costume. Além disso, as casas mais próximas da venda ficavam ainda a distância, sendo todas, como então eram, muito espalhadas. Esta circunstância, tirando toda esperança de pronto socorro, animou José a prolongar o exercício para o qual podia dizer-se estava preparado por diuturno hábito.

      Depois de alguns minutos, sentiu Timóteo subirem-lhe enfim às faces os restos do equivoco brio e gritou, sempre de longe:

      — Você quer matar-me a Chica, José?

      — Deixe ensinar esta cabra, seu Timóteo. Ela nunca viu homem, e por isso anda aqui feito galinho de terreiro, ou peru de roda, metendo medo a todos estes papa-sirís dos Afogados.

      Assim dizendo, José montava-se literalmente na mameluca, e dava-lhe com os restos da raiz da gameleira já sem serventia. A faca, que minutos antes reluzira em uma das mãos, estava agora atravessada na boca do matuto, em quem o ignóbil vendeiro parecia ver, não uma figura humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a ele também, não com igual pisa, mas com a morte, que para ele era mil vezes pior.

      De repente José colheu o ímpeto, pôs-se de pé, e inquiriu de si para si:

      — E o meu cavalo?

      Correu incontinente à margem e soltou um longo assobio que atroou a solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silêncio respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pátio onde alguns vizinhos, finalmente atraídos pelos gritos, a princípio furiosos, depois rouquenhos, e por último cansados e quase imperceptíveis da moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restitui-la à casa.

      — É o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que te vale é ter eu que ir em busca do meu cavalo. Se não fosse ele, nunca mais comias farinha.

      Dias depois voltou José, montado no seu cavalo, trazendo uma espingarda nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás cheios de peças de pano e outros objetos que se vendiam nas lojas da vila.

      — Boa tarde, seu Timóteo, disse ele, pondo-se em terra de um pulo e entrando sem-cerimônia na tasca. Dá-me notícias da Chica?

      — Você ainda vem falar nisso? redargüiu o vendeiro com semblante hipócrita, mas na realidade sobressaltado.

      — Por que não? Queria acabar de dar-lhe a lição que principiei na quarta-feira. Mas desta feita a coisa havia de ser de outra moda. Queria ver se lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta melancia.

      — Pois não sabe que a Chica morreu da sua tirania?

      — Ah! fez esta bestidade? Pois então, para celebrarmos o caso, bote aguardente e bebamos.

      Timóteo encheu sem demora o copo que apresentou a José.

      — Beba primeiro; disse este.

      — Não, eu não bebo; respondeu o taverneiro.

      — Não bebe? Há de beber. E não se demore que tenho pressa. Atrás de mim vem alguém em minha procura, e eu não estou disposto a fazer mais carniça por hoje.

      — Que imprudência a sua, menino! Não bebo, não quero beber, está acabado. Veja se me obriga.

      A este