“Resista, homem!”, dizia a voz forte que gritava no quarto ao lado.
“Não quero”, respondia Júlio, sonhando.
Se não se pode querer, se o não querer é mais forte que a vontade de mudar o que está ao redor, é passível de julgamento quem abdica? É a decisão dos sábios, dos fracos ou o quê?
Acordou no meio da noite e, sem ter outra saída, como por exemplo a vontade involuntária de quem quer dormir sem pestanejar, levantou-se e foi fumar na janela.
Ali sentiu o peso da decisão. Estaria correto? Era válido ter feito o que fizera? Era besta indomável aquela que tinha lhe possuído, deixando-lhe sem o menor contato com a razão? Agora já estava feito. E para ele era algo como “Se sim está bem, se não, está também”. Querer queria, afinal, tinha um pouco de ego como temos todos os humanos. Sabia também que as dificuldades apareceriam e que ele teria que lidar, certas vezes, com o completo desconhecido, e não era mais sobre as questões do lugar, mas sim da vida prática, tais como: quanto custa isto e como converter ganhando o que ganho no valor que dê para me manter com o estômago cheio? Como viver aqui e saber que tenho que pedir chorizo de tal maneira? (Não se aprende a pedir chorizo lendo Proust, sabia-se há tempos; mas antes o pedido também não era uma preocupação).
Quando saiu o resultado, quedou-se triste. Queria correr e gritar, mas já não podia. Foi prático. Foi ver sua mãe. Deu-lhe um abraço e começou, entre choro e mais choro, a dizer-lhe palavras, promessas, que, no fundo, sabiam ambos que não seriam realizáveis. No início ele nem queria que fossem realizáveis. Mas agora pesava-lhe vê-la, entrando na velhice e vendo-o chegar com a notícia que tinha nas mãos em forma de bilhete de admissão. Mas as mães são fortes como o frio que faz na Patagônia. E são silenciosas da mesma forma quando querem.
Vendeu seus discos. Fez um bom dinheiro. Guardou apenas um: Stack O’Lee Blues. Aquele levaria consigo para onde fosse. Vendeu seus livros. Fez algum dinheiro. Os que não pôde vender, deu a algumas pessoas amadas, com a promessa de que estava entregando-lhes para que guardassem até seu retorno.
Tinha conseguido uma bolsa para estudar durante dez meses em Paris. Depois voltaria a Buenos Aires e continuaria dando aulas. A primeira carta que enviara era para pedir certificações que lhe dariam a possibilidade de trabalhar como tradutor, tanto de francês quanto de inglês. Iria para estudar literatura. Até o seu retorno as coisas estariam melhores. A vida seria outra, tal qual também seria o governo. Assim ele esperava: que as coisas mudassem e que, com essa mudança que era o sonho, a melhoria chegasse e se instalasse na Argentina, e Buenos Aires seria o melhor lugar para caminhar e desfrutar de um café com uma medialuna entre qualquer lugar no planeta.
Na segunda-feira, 15 de outubro, com o tempo ainda frio devido aos ventos que ainda eram bastante cortantes próximo ao porto, Júlio embarcou e, na popa do barco, começou a acenar para algumas pessoas próximas e amáveis que foram com ele ao cais. No percurso até o local, umas foram completamente quietas, sabendo que sentiriam sua falta. Outras falavam que aproveitasse a possibilidade, que era única, que ele era jovem e que deveria fazer tudo o que quisesse. “Mesmo porque dez meses passam rápido”, diziam alguns.
Quando estava a bordo do Provence, em direção a Paris, com o barco zarpando, sabiam todos, os que foram quietos, os que foram falando e também Júlio, que nunca mais iria voltar. Estava exilando-se de Buenos Aires, de sua vida pregressa e querendo ir para o infinito de possibilidades que o jogo lhe estava oferecendo. Sabia que eram responsabilidades dele todas aquelas ações. As cartas, o pedido que elas continham, a bebedeira, ou as bebedeiras, e os livros e discos, tudo isso eram escolhas dele.
Com sua infinita altura, a pequenez da culpa estava tentando tomar-lhe o coração, que era voluntarioso.
“Vou escrever quando chegar lá!”, pensou consigo mesmo. E, quando Buenos Aires já ia diminuindo na vista, foi sentar-se em uma cadeira e observar a gente que lá ficava.
O Nobel de Jorge Luis Borges
Saímos da sala que possui a Unsam na Saenz Peña, Coetzee e eu. Estávamos cansados, afinal haviam sido quatro horas intensas de aulas sobre os livros de Mia Couto. Me lembro muito bem que já estava fazendo frio no outono porteño, de um abril de 2016.
A nossa amizade surgiu devido a um contato por correio eletrônico, que trocamos quando um amigo em comum nos colocou juntos em um seminário sobre literatura sul-africana que aconteceria no Chile. Isso foi em meados dos anos 2003. Desde então não deixamos de nos comunicar. Coetzee, além de professor, era um grande escritor. Tinha já escrito alguns romances bastante interessantes e que tinha tido grande aceitação tanto da crítica quanto dos leitores. Eu era apenas um contista meia-boca que mandava seus contos para Coetzee, que olhava e dizia que estavam bons, mas eu nunca acreditava. Uma coisa era certa: eu dava aulas mais animadas do que as dele. Ele sempre deixava nos alunos uma estranha sonolência; acredito eu que o motivo seja sempre a sua fala bastante pausada e com volume baixo. Além, claro, dos seus olhos estarem mais no infinito do que nas pessoas ao seu redor, o que, claramente, chateava um pouco os alunos. Eu era — e acho que ainda sou — mais expansivo. Adoro contar sobre a vida dos autores que estamos falando, mudar a entonação da voz cada vez que falo sobre um determinado tema. Tinha — e tenho, acho — uma boa expressão facial também, o que ajuda muito a deixar o público atento, sempre à espera da próxima ação.
Éramos, sim, amigos.
Quando saímos na rua, ele estava silencioso como é o pátio do Mercado de las Luces e ficou esperando que eu, mais uma vez, indicasse algum lugar para que comêssemos. Eu comeria um bom bife de chorizo, com gordura e ao ponto, e ele alguma coisa verde. Certamente viveria até os cem anos, era o que eu sempre pensava quando olhava para ele.
O curso era para ser de um mês, e já estávamos na metade. Aquela era, por incrível que possa parecer, a primeira vez que íamos comer sozinhos, sem a companhia ou de alguns alunos ou de outros professores, que sempre davam um jeito de dar uma passadinha para um oi e ficar nos esperando para ciceronear e nos mostrar alguma coisa sobre como o mundo estava centrado naquilo que eles estavam realizando em suas investigações. Às vezes eu até me esquecia que trabalhava dentro da academia universitária, mas daí aparecia alguém com seu discurso estranhíssimo, e eu me recordava na mesma hora.
Entramos em um restaurante próximo à Avenida Corrientes, que estava toda iluminada, como de costume. Por estarmos em um momento sozinhos, Coetzee — supreendentemente, tenho que ressaltar — resolveu me acompanhar em uma garrafa de vinho. Na Argentina os vinhos são incríveis e podem ser muito baratos. Como eu sempre gostei de vinho que fosse barato, sempre queria levar caixas e mais caixas de garrafas para o Brasil, mas isso sempre acabava por me deixar insatisfeito porque era um desejo impossível.
Como era uma novidade, resolvi que não pediríamos taças e sim uma garrafa. E disse a ele “Vou até pagar por essa garrafa, porque isto deve ser comemorado!”.
Ele riu, do jeito dele.
“Maestro, por favor, lo mejor vino que tenés… hasta 90 pesos”, disse eu, mantendo a parcimônia.
Ele riu às gargalhadas da minha decisão de não gastar muito. Alguns dizem que são somente nesses momentos em que ele fala ou comigo ou com uma outra amiga nossa, que também é professora de literatura, que John ri da forma como ria naquele momento.
Porém não consegui fazer com que ele comesse um bom pedaço de carne, como era o esperado. Ele escolheu a tal coisa verde, envolta em uma massa de não sei o quê — não conheço nem o nome que se dá a essas coisas.
Depois de falarmos o que estávamos fazendo de nossas vidas (porque, por incrível que possa parecer, não havíamos falado ainda sobre nós mesmos, já que chegamos em voos separados