A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
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Жанр произведения: Зарубежная классика
Год издания: 0
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mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a interessante rapariga, que tanto o preoccupára.

      Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada denominação de zuavo!

      A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d'ella e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.

      – Perdão, minha senhora – disse Henrique, comprehendendo aquelle gesto – mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não era estranha.

      – E sou eu essa pessoa?

      – É v. ex.a effectivamente.

      – Pois já nos vimos?

      – Já… quero dizer, eu já vi v. ex.a

      – Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter visto nunca. Apesar d'isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas, sobrinho d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é verdade?

      – Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.a não é antigo tambem; data de algumas horas apenas.

      A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça uma ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde resultou para aquella gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode animar um semblante de mulher.

      – Esta manhã – proseguiu Henrique, a quem os encantos d'aquelle gesto não tinham passado despercebidos – assisti a uma scena commovente. O logar era uma deveza; uma joven senhora… joven e… e com outras qualidades, além d'esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio…

      Ella não o deixou continuar.

      – Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto… Não admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d'agua ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual. Não lhe parece?

      Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a escutar o que uma das creanças lhe dizia.

      – Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d'ella no meu prato.

      – Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!

      – Então – disse Magdalena, que a este nome correspondia a contracção familiar, de que se serviam as creanças. – Olhem agora se teem juizo. Vejam se querem que eu vá dizer á mamã que venha para aqui.

      – Não é ella a mãe, visto isso – pensou Henrique, como quem modificava uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação. – Será irmã? Talvez… Ou mestra… É mais provavel que seja mestra. Esta mulher foi de certo educada na cidade. Tem uns ares distinctos…

      E elevando a voz:

      – v. ex.a está-me recordando uma scena de um precioso livro, que nunca me canço de ler.

      – Qual é?

      – Werther.

      – Ah!

      – Conhece?

      – Conheço… quero dizer, li-o, por acaso, ha pouco tempo. Compara-me a Carlota? É por estar a distribuir as rações d'estas creanças? Que mulher ha que não seja Carlota, n'essa parte? Em todas as casas se passa uma scena assim. Bem se vê que não tem familia.

      – Por quê?

      – Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo d'esta.

      – É certo – respondeu Henrique com melancolia. – Deve ser essa uma das causas; mas não a unica – accrescentou galanteadoramente.

      E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora tinha lido Werther.

      Magdalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe:

      – Então que lhe parece esta nossa aldeia?

      – Um jardim. Hontem, ao chegar, confesso que me foi desagradavel a impressão recebida. Nem admira; a noite, o frio, a chuva, o cansaço. Esta manhã, porém, a transformação foi completa. Estou encantado, fascinado! N'uma palavra, minha senhora, eu, cidadão em corpo e alma, reconciliei-me em poucas horas com a vida do campo.

      – Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados, qualidades ou defeitos de educação não se perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará por Lisboa outra vez.

      – Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha razão o doutor, que me prometteu a cura das minhas doenças, se me costumasse devéras a estes habitos campestres.

      – Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?

      – Por que não? Hoje já almocei ás sete horas, já andei mais do que uma semana inteira ando em Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da terra.

      – As raridades?! E que raridades são essas que inda tem para vêr? A nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.

      – Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do quasi nada que d'ella observei esta manhã, parece-me até…

      – Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada passo se encontra um ponto de vista, que nos obriga a uma exclamação. Mas ha por ahi certos cicerones, que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas da arte. Peça a Deus que o livre d'esse flagello.

      – v. ex.a assusta-me. Embora; se lhes cair nas mãos, farei por achar curioso o que elles acharem. Vae ser esse o meu systema de cura. Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o regimen que me prescreveu o medico, quando me receitou o campo, a titulo de emolliente; se o seguir, salvo-me.

      – E não o diga a rir. Se quizer prender-se á aldeia, abjurar os attractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo; principiar por cultivar o interesse por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo, declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia ou pela junta de parochia contra o abbade; ralhar do regedor na questão com os taberneiros ou defendel-o. Emquanto não chegar a isso, desconfie da sua acclimação.

      – Farei por conseguil-o o mais depressa possivel. Outra coisa necessaria é deixar-me convencer ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em perpetua admiração deante de uns certos nomes famosos que ha sempre em todas as terras pequenas, e que nos atiram á cabeça a cada momento. Por exemplo, aqui já sei de um, com que encherei a bôca a proposito de tudo; é o de uma celebre morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço falar, desde que puz os pés, ou por mim a alimaria que me trouxe, n'este productivo torrão.

      Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.

      – Então com que, tem ouvido falar muito n'essa morgadinha?

      – Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora. Não ha pinhal, quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença a essa entidade, para mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos, como um estribilho de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de minha tia, na loja do correio, em toda a parte o ouço