Meus pais morreram como médicos pobres. O juramento proferido, pessoal e profissional, foi o de salvar vidas. Pagavam contas de estranhos no hospital. Após o enterro deles, nenhum parente quis a minha guarda. Sabiam que o hospital particular da minha família estava falido. Mira me adotou. Era a enfermeira-chefe da instituição.
Eu estava exausto. Fechei os olhos. Minha cabeça doía. Ouvir a confirmação da morte de Mira seria como receber um soco. Sequer escutei os passos vindos na minha direção, até sentir mãos me tocando.
- Tejiri, ganhamos. O juiz concedeu permissão para você levar Mira para casa até que ela... se vá.
A novidade de Kome, meu advogado, me trouxe alegria. Chorei e o abracei com força. Corri na direção da enfermaria de Mira. Gritei para o médico parar o procedimento.
Eu estava ofegante ao chegar. - Pare, doutor, o seu hospital perdeu. O senhor e toda a equipe perderam. Eu ganhei a ação para levar Mira pra casa. Ela vai comigo.
Meu advogado adiantou-se com a ordem judicial: - Por favor, autorize a saída da paciente para o meu cliente. Daqui por diante ele é o responsável.
Sorri, radiante de alegria, ao ouvir a afirmação. - Sim, devolva a minha Mira. Todos devem ter dito a ela coisas horríveis para que odiasse a si própria e procurasse a morte como solução.
Toquei a bochecha de Mira.
Ela sorriu debilmente. - Você é um tolo. Ah, Tejiri, isso foi uma bobagem. O fedor será insuportável na sua casa. Depois da minha partida, o apartamento irá cheirar mal ainda por um bom tempo.
- Sim, Mira, é esse o meu desejo. Quero manter o seu cheiro; para sempre.
As enfermeiras não gostaram de limpar Mira nem pela última vez.
- Escute, enfermeiras, eu sei que nenhuma das senhoras quer fazer isso. Mas mudem essas caras carrancudas, façam isso sorrindo. Ela está saindo do hospital para sempre. Vou levá-la para uma ilha. Seremos apenas nós dois no paraíso.
- Mal posso esperar para ver esse paraíso - disse Mira.
- É apenas uma casinha bonita, numa ilha em Epe. Ah, Mira, você vai adorar.
* * * * * *
Estávamos na varanda. O sol da manhã nos banhava. Era como um bálsamo de cura. Havia feito muito frio na noite anterior. O calor moderado confortava a minha pele. Mira se sentia em casa. Ela estava em uma maca. Apoiei suas costas e braços em alguns travesseiros.
- Tejiri, você é o melhor cuidador do mundo. Prometo que não o incomodo.
Ela estava frágil. A maior parte de seus cabelos havia caído e os seus olhos tinham as cores de um rio sombrio e triste. Eu não conseguia enxergar a alegria que seu rosto costumava irradiar. Abri uma barra de chocolate e mordi um pedaço.
- Tejiri, por favor, me dê um pedacinho.
- Mira, e a diabetes? Isso tem açúcar.
Ela zombou: - Tejiri, Tejiri, pode um corpo morto morrer mais?
- De jeito nenhum, desculpe. Tome, pode comer esse e o resto que está na geladeira.
Abri um pouco mais a embalagem e dei para Mira. Ela comeu o chocolate macio com satisfação. Sorriu, saboreando e deu outra mordida.
- Mira, está na hora de tomar banho.
- Tejiri, me deixe ficar um pouco aqui. Estou adorando - Mira se aninhou ainda mais na cama macia.
- Sabia que você adoraria esse lugar. Eu sempre falei em construir uma ilha particular pra lhe dar de presente, lembra? Perdão por ter sido tão tarde.
Mira suspirou profundamente. - Tejiri, você fez bastante. Tenho tanto orgulho... Você agora é um bem-sucedido engenheiro de Petróleo. Um brinde à prosperidade! - e me deu um pequeno pedaço de chocolate.
Peguei e comi. Olhei para as águas calmas da ilha. Uma rajada de vento fresco soprou em meu rosto e pensei: “essa prosperidade nada significa sem você para desfrutá-la”.
- Vá, pegue aqueles chocolates. Quero comer todas as barras que houver na geladeira.
- Está bem, Mira, vou pegar os chocolates.
- Eu amo você, Tejiri.
- Mira, sabe o quanto eu a amo. - Dei um beijinho na sua testa.
Fui ao banheiro e, enquanto urinava, uma brisa fria roçou as minhas pernas. Tive um calafrio repentino e pensei de onde poderia vir, porque a temperatura do banheiro estava cálida. Olhei a porta e a janela fechadas; fiquei meio sem entender. Sacudi minha cabeça, dei descarga e lavei as minhas mãos.
Levei um tempo para abrir todos os chocolates, colocá-los numa bandeja e cobri-los com um pano. A caminho de Mira, tropecei e gritei. Machuquei o dedão, mas ignorei a dor e corri para a varanda.
Mira estava confortavelmente relaxada. Tinha colocado um travesseiro sob os pés. Seus lábios estavam lambuzados de chocolate. Sorri, coloquei a bandeja sobre a mesa e me ajoelhei em frente a ela.
- Mira, olhe só quantos chocolates. Você vai fazer uma festa!
Mira estava em silêncio e imóvel. Peguei sua mão: o corpo estava quase frio. Seus olhos permaneciam abertos. Fechei suas pálpebras e chorei. Mira não esperou para se despedir de mim...
Lágrimas rolaram pela minha face por muitos dias.
Dois
Histórias da Aldeia
Jessa nasceu em Jagua. Quando o homem mais velho da aldeia morreu, ele esperou fervorosamente ascender a essa posição, por isso ficou chocado com as notícias recebidas do Conselho de Coroação sobre Jagua não ser o seu lugar de origem. Assim, eles não poderiam coroá-lo como Okpako – o ancião da aldeia. Seus ancestrais tinham sido andarilhos. Como Jagua era hospitaleira, haviam resolvido se estabelecer naquela comunidade.
O primogênito de Jessa, Jaja, ficou enraivecido. Jurou processar a comunidade perante o Tribunal. Queria provar que eles estavam enganados, pois quatro gerações do seu clã já não eram de forasteiros.
Jaja argumentava que, quando um indivíduo permanecia em determinado território por algumas décadas, naturalmente se tornava cidadão do Estado. Os migrantes eram aceitos e respeitados como os locais. Tinham as mesmas vantagens, apesar de não existir nenhuma documentação oficial de cidadania no passado. Jessa tentava convencer o filho a não entrar com a ação na Justiça.
Entretanto, Jaja estava inflexível e deu entrada ao processo. Dizia ao pai que a denúncia pública sobre o seu clã era deplorável.
- Amanhã, procurarei obter informações na aldeia - declarou Jaja. - Traçarei nossas origens.
No dia seguinte, Jessa saiu para um passeio noturno. Ao retornar, seu filho estava esperando na sala. Jaja se levantou e colocou o pai sentado, encostando a bengala dele na parede.
- Onde esteve? - Jaja perguntou. - Parece exausto. Vou pegar um copo d´água pro senhor.
Jessa bebeu a água vagarosamente até o final. Jaja pegou o copo e o colocou sobre a mesa.
- Obrigado, filho. O que descobriu? Você ficou muito tempo fora.
Pegou sua caixa de rapé e colocou um pouco do pó nas narinas. Espirrou e beliscou o nariz.
- Pai, tracei nossa genealogia até Ebito. Fica a quatro aldeias de Jagua.