Aquela continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo imperceptível, mas profundo e quase sempre insondável, que a inutiliza inteiramente, faz pensar em alguma coisa mais forte que nós, que nos guia, que nos impele e em cujas mãos somos simples joguetes. Em vários tempos e lugares, a loucura foi considerada sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de nós quando, ao vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que já não é ele quem fala, é alguém, é alguém que vê por ele, interpreta as coisas por ele, está atrás dele, invisível!...
Quaresma saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. Voltou à sua casa, mas a vista das suas coisas familiares não lhe tirou a forte impressão de que vinha impregnado. Embora nunca tivesse sido alegre, a sua fisionomia apresentava mais desgosto que antes, muito abatimento moral, e foi para levantar o ânimo que se recolheu àquela risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas.
Não fora ele, porém, quem se lembrara; fora a afilhada que lhe trouxe à idéia aquele doce acabar para a sua vida. Vendo-o naquele estado de abatimento, triste e taciturno, sem coragem de sair, enclausurado em sua casa de São Cristóvão, Olga dirigiu-se um dia ao padrinho meiga e filialmente:
— O padrinho por que não compra um sítio? Seria tão bom fazer as suas culturas, ter o seu pomar, a sua horta... não acha?
Tão taciturno que ele estivesse, não pôde deixar de modificar imediatamente a sua fisionomia à lembrança da moça. Era um velho desejo seu, esse de tirar da terra o alimento, a alegria e a fortuna; e foi lembrando dos seus antigos projetos que respondeu à afilhada:
— É verdade, minha filha. Que magnífica idéia, tens tu! Há por ai tantas terras férteis sem emprego... A nossa terra tem os terrenos mais férteis do mundo... O milho pode dar até duas colheitas e quatrocentos por um...
A moça esteve quase arrependida da sua lembrança. Pareceu-lhe que ia atear no espírito do padrinho manias já extintas.
— Em toda a parte - não acha, meu padrinho? - há terras férteis.
— Mas como no Brasil, apressou-se ele em dizer, há poucos países que as tenham. Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o milho, o feijão, a batata inglesa... Tu irás ver as minhas culturas, a minha horta, o meu pomar - então é que te convencerás como são fecundas as nossas terras!
A idéia caiu-lhe na cabeça e germinou logo. O terreno estava amanhado e só esperava uma boa semente. Não lhe voltou a alegria que jamais teve, mas a taciturnidade foi-se com o abatimento moral, e veio-lhe a atividade mental cerebrina, por assim dizer, de outros tempos. Indagou dos preços correntes das frutas, dos legumes, das batatas, dos aipins; calculou que cinqüenta laranjeiras, trinta abacateiros, oitenta pessegueiros, outras árvores frutíferas, além dos abacaxis (que mina!), das abóboras e outros produtos menos importantes, podiam dar o rendimento anual de mais de quatro contos, tirando as despesas. Seria ocioso trazer para aqui os detalhes dos seus cálculos, baseados em tudo no que vem estabelecido nos boletins da Associação de Agricultura Nacional. Levou em linha de conta a produção média de cada pé de fruteira, de hectare cultivado, e também os salários, as perdas inevitáveis; e, quanto aos preços, ele foi em pessoa ao mercado buscá-los.
Planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que punha em todos os seus projetos. Encarou-a por todas as faces, pesou as vantagens e ônus; e muito contente ficou em vê-la monetariamente atraente, não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso mais uma demonstração das excelências do Brasil.
E foi obedecendo a essa ordem de idéias que comprou aquele sítio, cujo nome - "Sossego" - cabia tão bem à nova vida que adotara, após a tempestade que o sacudira durante quase um ano. Não ficava longe do Rio e ele o escolhera assim mesmo maltratado, abandonado, para melhor demonstrar a força e o poder da tenacidade, do carinho, no trabalho agrícola. Esperava grandes colheitas de frutas, de grãos, de legumes; e do seu exemplo, nasceriam mil outros cultivadores, estando em breve a grande capital cercada de um verdadeiro celeiro, virente e abundante a dispensar os argentinos e europeus.
Com que alegria ele foi para lá! Quase não teve saudades de sua velha casa de São Januário, agora propriedade de outras mãos, talvez destinada ao mercenário mister de lar de aluguel... Não sentiu que aquela vasta sala, abrigo calmo dos seus livros durante tantos anos, fosse servir para salão de baile fútil, fosse testemunhar talvez rixas de casais desentendidos, ódios de família - ela tão boa, tão doce, tão simpática, com o seu teto alto e as suas paredes lisas, em que se tinham incrustado os desejos de sua alma e toda ela penetrada da exalação dos seus sonhos!...
Ele foi contente. Como era tão simples viver na nossa terra! Quatro contos de réis por ano, tirados da terra, facilmente, docemente, alegremente! Oh! terra abençoada! Como é que toda a gente queria ser empregado público, apodrecer numa banca, sofrer na sua independência e no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas, sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentar-se de maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma vida feliz, farta, livre, alegre e saudável?"
E era agora que ele chegava a essa conclusão, depois de ter sofrido a miséria da cidade e o emasculamento da repartição pública, durante tanto tempo! Chegara tarde, mas não a ponto de que não pudesse antes da morte travar conhecimento com a doce vida campestre e a feracidade das terras brasileiras. Então pensou que foram vãos aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida, era uma forte base agrícola, um culto pelo seu solo ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela linha de preencher,
Demais, com terras tão férteis, climas variados, a permitir uma agricultura fácil e rendosa, este caminho estava naturalmente indicado.
E ele viu então diante dos seus olhos as laranjeiras, em flor, olentes, muito brancas, a se enfileirar pelas encostas das colinas, como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas monstruosas, os jambos, as mangas capitosas; e dentre tudo aquilo surgia uma linda mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa - era Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!...
As primeiras semanas que passou no "Sossego", Quaresma as empregou numa exploração em regra da sua nova propriedade. Havia nela terra bastante, velhas árvores frutíferas, um capoeirão grosso com camarás, bacurubus, tinguacibas, tibibuias, monjolos, e outros espécimes. Anastácio que o acompanhara, apelava para as suas recordações de antigo escravo de fazenda, e era quem ensinava os nomes dos indivíduos da mata a Quaresma muito lido e sabido em coisas brasileiras.
O major logo organizou um museu dos produtos naturais do "Sossego". As espécies florestais e campesinas foram etiquetadas com os seus nomes vulgares, e quando era possível com os científicos. Os arbustos, em herbário, e as madeiras, em pequenos tocos, seccionados longitudinal e transversalmente,
Os azares de leituras tinham-no levado a estudar as ciências naturais e o furor autodidata dera a Quaresma sólidas noções de Botânica, Zoologia, Mineralogia e Geologia.
Não foram só os vegetais que mereceram as honras de um inventário; os animais também, mas como ele não tinha espaço suficiente e a conservação dos exemplares exigia mais cuidado, Quaresma limitou-se a fazer o seu museu no papel, por onde sabia que as terras eram povoadas de tatus, cutias, preás, cobras variadas, saracuras, sanãs, avinhados, coleiros, tiês, etc. A parte mineral era pobre, argilas, areia e, aqui e ali, uns blocos de granito esfoliando-se.
Acabado esse inventário, passou duas semanas a organizar a sua biblioteca agrícola e uma relação de instrumentos meteorológicos para auxiliar os trabalhos da lavoura.
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