De forma inesperada rebentou, abriu-se, ouvi gritos, choros, soluços como se fossem de uma criança, pedindo ajuda, suplicasse para sair, para ser ela mesma.
Tranquei ainda uma vez com força, aquela gaveta.
Mas aqueles sons e aquelas imagens tentavam sair e libertar-se.
Eram insuportáveis.
O meu coração batia cada vez mais forte para sobrepor-se em tudo e incapacitar-me para esquecer.
Era uma gaveta, apenas uma!
Tinha apinhado desta forma muitos sonhos, pensando assim de poder ser uma mulher serena e feliz.
Deveria preocupar-me?
O que teria acontecido se tivesse aberto escancaradamente também uma outra vez, e depois talvez uma outra ainda?
A coisa aterrorizava-me, mas não posso não reconhecer que começou a seduzir-me cada vez mais.
Questionei-me, um dia, quem eu era realmente.
Questionei-me onde é que estivesse a ir e quem tivesse escolhido o meu caminho.
O que descobriria ao abrir aquelas gavetas?
Conseguiria reanimar a minha verdadeira essência reduzida à agonia pelos condicionalismos externos?
Nunca estaria em condições de superar as minhas fraquezas e de encarar os meus medos?
Sou uma pessoa optimista, amo a vida; sou social e julgo importantes como fundamentais as amizades.
Entre mulheres, infelizmente, não é insólito instaurar-se de maçadores como inúteis sentimentos de inveja e de ciúme, por isso, chegar à especial solidariedade e à cumplicidade que tende realmente unidas torna-se extremamente raro.
Não é fácil encontrar uma verdadeira amiga, mas quando se tem esta sorte desaparecem orgulho e competição e nasce o respeito total, cresce a confiança cega e a lealdade.
A união torna-se indissolúvel, a amizade torna-se um bem por salvaguardar de improváveis como raros e excepcionais acontecimentos negativos que teriam a força de enfraquecê-la, mas que normalmente nada podem contra o agradável bem-estar que experimente estando unidos, confiando-se segredos mais íntimos, partilhando as risadas, as experiencias da vida, as emoções, mesmo criticando-se mutuamente e encontrar soluções comuns: o objectivo principal é a união e a força do casal.
Conheço uma pessoa especial que espelha estas características. Stefania não é apenas uma amiga, as vezes assume-se como mãe que espalha conselhos, as vezes é a filha a quem dispensar o meu amor; pode parecer estranho, mas vê-la interpretar o papel de namorada ciumenta não é improvável, sobretudo se a ignoro um pouco, mas ela permanece um ombro sobre o qual encostar, uma palavra de conforto, o respeito do meu silêncio, a compreensão das minhas fraquezas, mas também um doce peso por suportar.
Stefania tem um físico atlético, é muito alta, alguns centímetros a mais que eu.
Os seus cabelos são castanhos e luzentes, com umas tonalidades tendentes ao vermelho carregado semelhantes àqueles da madeira de amaranto, muitas vezes colhidos numa trança que se move sinuosa nas suas costas. Veste-se habitualmente de forma casual, tem a predilecção pela prática no que veste; eu, pelo contrário, prefiro usar roupas mais femininas, a seu ver vaidosas e antiquados.
A sua exuberante sinceridade combinada com uma natural fraqueza conflui, as vezes, cruéis juízos.
Não obstante uma estrada de centenas de quilómetros agora nos separa, sei sempre de poder contar com ela, e vice-versa.
Nos suportamos, nos criticamos obstinadamente, nos proferimos opiniões, nos elogiamos e nos mandamos passear… sempre com grande afecto, e é difícil, uma viver sem a outra.
A segurança recíproca torna especial esta verdadeira amizade, um ingrediente que normalmente escapa nas relações amorosas.
Nos une uma grande paixão: partir lá para metas distantes.
Sempre adorei viajar, me dá um sentimento de felicidade.
Quando me distancio de tudo e de todos encontrando-me em dimensões e fusos diferentes é como se conseguisse avaliar o resto por fora: de longe, com efectivo destaque seja físico como mental.
Tiziano Terziani escreveu: a nossa destinação não é por acaso um lugar, mas um novo modo de ver as coisas: e é desta forma também para mim, ou melhor para nós os dois.
Viajando consigo reparar melhor dentro de mim, para ver com clareza quem sou, e para eu poder melhorar.
É como se o mundo com todos os seus problemas se distanciasse, mudasse de horizonte, e eu readquiro as minhas forças, as minhas energias.
Afastando-me da realidade rotineira, uma carga de adrenalina reforça-me tanto assim para me dar vitalidade e positividade enormes, ajudando-me a encontrar as respostas certas.
Viajar é uma invasão de mundos que não são os meus, é sempre uma satisfação que me proporciona um emocionante sentimento de liberdade, e me ajuda a descobrir de novo parte da minha autonomia.
Há algum tempo realizei aquele grande desejo que tinha desde criança: tornei-me uma hospedeira de voo.
Passaram anos, mas me lembro como se fosse ontem o momento em que decidi mudar a minha vida. Aquele dia está impresso na minha memória. Estava com Stefania.
Gostaria de ser aeromoça
Chega, estou farta! Mario estava insuportável, chega a me seguir até quando vou tomar um café com as amigas. Não quer que eu vá para a aula e me proíbe até de cumprimentar meu ex. Quero pensar mais em mim mesma e me tornar independente. Por que não criamos algo nosso e abrimos um negócio juntas? O que você pensa para o futuro, Anna? O que você gostaria de fazer?
Foi isso que me disse Stefania em nosso habitual encontro matutino para um café no “Bar das Finanças” em frente a minha casa, infeliz com sua perspectiva de futura dona de casa, tão desejada por seu noivo ciumentíssimo.
Nunca me tinha feito seriamente essa pergunta, nem tinha feito planos de carreira.
Depois de sair da escola e me inscrever na faculdade de direito, já que as matérias científicas não eram para mim, procurei um trabalho como secretária para me manter estudando e tentar satisfazer alguns pequenos caprichos.
Na época, acordava todos os dias à mesma hora e, depois de um rápido café da manhã, me metia no trânsito caótico, enfrentando os 45 minutos de filas intermináveis nos semáforos e os barulhentos engarrafamentos nas rótulas, tentando poupar alguns minutos para chegar a tempo no escritório.
Todo dia, na rua Barriera del Bosco, onde sempre ficava presa em um ponto especial de engarrafamento por pelo menos 15 minutos, eu encontrava com frequência um homem: um barbudo sempre sentado em um montinho de terra que ele fazia com as mãos.
Agachado sob a sombra de uma árvore, observava aquele interminável vai e vem, igual todos os dias.
O olhar daquele indivíduo tinha algo de sereno e vislumbrava uma realidade distante da sua: todos aqueles homens, mulheres e crianças que passavam por ele, aprisionados em seus carros.
Ele era bastante discreto, como se não quisesse que percebessem sua presença a observar atentamente, admirado de encontrar sempre as mesmas caras nervosas e exaustas, os mesmos carros enfileirados um atrás do outro, e todo aquele buzinaço que soava como um protesto. Acho que pensava como seria difícil para todos aqueles homens encontrarem a tranquilidade que ele parecia ter atingido.
Suas pupilas se moviam atentas e direcionavam olhares quase benevolentes e indulgentes a todos aqueles motoristas que, a sua volta, olhavam com compaixão ou desprezo para ele e seus trapos jogados ao relento, muitas vezes úmido.