— Quem é, titia ? perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem ha de ser? disse a tia num suspiro de victima — uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas podres de Deus... Uma orphã... Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por ahi a fóra.
"Brinquem !" Brincar ! Como seria bom brincar ! reflectiu com suas lagrimas, no canto, a dolorosa martyrezinha que até alli só brincára, em imaginação, com o cuco.
Chegaram as malas e logo,
— Meus brinquedos ! reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu as malas e tirou-os fóra.
Que maravilha ! Um cavallo de rodas !... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginára coisa assim, tão galante. Um cavallinho ! E mais... Agora... Que era aquillo? Uma criancinha de cabellos amarellos... que fala "papá"... que dorme...
Era de extase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem siquer sabia o nome desse brinquedo. Mas comprehendeu que era uma criança artificial.
— E' feita !... murmurou, extasiada.
E, dominada pelo enlevo. um momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas. Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e approximou-se da criaturinha de louca. Olhou-a com assombro e encanto, sem geito. sem animo de pegal-a.
As meninas admiraram-se d'aquillo :
— Nunca viu boneca ?
— Boneca ? repetiu Negrinha. Chama Boneca ?
Riram-se as meninas de tanta ingenuidade.
— Como é boba ! disseram. E você como se chama ?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o extase da bobinha perdurava. disseram-lhe, estendendo a boneca :
— Pegue !
Negrinha olhou para os lados, resabiada, com o coração aos pinotes. Que aventura, Santo Deus ! Seria possivel ? Depois, pegou na boneca. E muito sem geito, como quem pega o Senhor Menino, sorria para ella e para as meninas, com relances d'olhos assustados para a porta. Fóra de si, literalmente... Era como se penetrasse no céo e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe viesse adormecer ao collo. Tamanho foi o enlevo que não viu chegar a patrôa já de volta. D. Ignacia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, immovel, presenciando a scena.
Mas. era tal a alegria das sobrinhas ante a surpresa extactica de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração, afinal, bambeou. E, pela primeira vez na vida, soube ser mulher. Apiedou-se.
Ao percebel-a na sala Negrinha tremeu, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente. e hypotheses de castigos peiores ainda. E incoerciveis lagrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveiu foi a coisa mais inesperada do mundo: — estas palavras, as primeiras que ouviu, doces, na vida:
— E vá você tambem, mas veja lá, hein ?
Negrinha ergueu os olhos para a patrôa. olhos ainda de susto e terror. Mas não viu nella a féra antiga. Comprehendeu e sorriu-se.
Se a gratidão sorriu na vida, alguma vez, foi naquella carinha...
Varia a pelle, a condição, mas a alma da criança é a mesma, na princezinha e na mendiga. E para ambas é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos á vida da mulher: o momento da boneca, preparatorio, e o momento dos filhos, definitivo. Depois disso. está extincta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu que tinha uma alma no primeiro dia da boneca. Divina eclosão ! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si, e que desabrochava, afinal, como fulgurante flôr de luz. Sentiu-se elevada á altura de ser humano. Cessára de ser coisa e d'ora ávante lhe era impossivel viver a vida de coisa. Si não era coisa ! Si sentia ! Si vibrava !...
Assim foi, e essa consciencia a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas, levando comsigo a boneca, e a casa reentrou no ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
D. Ignacia, pensativa, já não a atenazava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caira numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostalgicos, scismarentos.
Aquelle dezembro de férias. luminosa rajada de céo, trevas a dentro do seu doloroso inferno. envenenára-a.
Brincára ao sol. no jardim — brincára !... Acalentára, dias seguidos, a linda boneca loura. tão boa, tão quieta, a dizer papá e a cerrar os olhos para dormir. Vivera realisando sonhos da imaginação. Desabrochara-se d'alma.
A repentina retirada de tudo isso fôra forte demais para a debil resistencia de uma alma com um mez de vida apenas. Enfraqueceu, definhou, como roida de invisivel doença consumptora. E uma febre veiu, que a levou.
Morreu na esteirinha rota. abandonada de todos, como um gato sem dono. Ninguem, entretanto, morreu jámais com maior belleza. O delirio rodeou-a de bonecas. todas louras, de olhos azues. E de anjos... E bonecas e anjos rodamoinhavam em torno della numa farandola do céo. Sentiu-se agarrada por aquellas mãosinhas de louça, abraçada. rodopiada.
Veiu a tontura. e uma nevoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida. confusamente, num disco. Resoaram vozes apagadas, longe, e o cuco pela ultima vez lhe appareceu, de bocca aberta. Mas, immovel, sem rufar as azas. Foi-se apagando. O vermelho da guéla desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas...
Depois, valla commum. A terra papou com indifferença sua carnezinha de terceira, uma miseria, quinze kilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma comica, nas meninas ricas.
— Lembras-te ? aquella bobinha da titia, que nunca vira boneca ?
Outra, de saudade, no nó dos dedos de D. Ignacia :
— Como era boa para um cocre !...
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