A outra manhã reveladora, quando sofri a tua epifania, foi quando me deste aquele beijo inocente. Quando cheguei a casa prostrei-me na rede e enquanto o vento curto do baloiço roçava-me o rosto feliz, a lembrança do teu toque provocava-me sensações quase epiléticas, em sacudidelas interiores como insetos a agitarem o meu peito ou como vermes doces a remexerem-se nas minhas entranhas.
As manhãs... Talvez sejam premonitórias, ou algo parecido com sinais. As manhãs no liceu não eram agradáveis se não te encontrasse no recreio, mesmo que fosse apenas para que da tua boca saísse um ou outro murmúrio, porque eu devia (como to disse alguma vez) tirar pouco a pouco as palavras de ti, uma metáfora realmente apropriada para definir a tua realidade quando eras um rapaz pálido e calado. O importante era perceber as nossas figuras sentadas na berma da calçada, com as minhas pernas juntas e as minhas mãos no meu colo, e captar os meus arrepios que interagiam com o ritmo dos teus movimentos, como dois estranhos magnetos que querendo atrair um ao outro se roçavam num baloiço de tensão. Naqueles dias comecei a apaixonar-me por ti, pelas tuas longas pausas de silêncio, pelo teu olhar projetado no horizonte em busca de ideias e que me incitaram a explorar o enigma da tua prudência.
Foi uma manhã que me esperaste sob aquela chuva torrencial. Insististe em ir ao encontro, não percebendo que o mais prático era evitar o dilúvio e adiá-lo até à saída do arco-íris. Eram as manhãs que nos reuniam no parque da aldeia, no canto que batizámos com um nome extravagante e que usaríamos como secreto em ocasiões posteriores, sempre tendo presente que cada casal o tinha alcunhado com um nome que se adequava à sua relação. Foi uma manhã em que roçaste os meus seios com o despudor das tuas hormonas. Foi uma manhã (quero sonhar assim) quando acariciaste as minhas nádegas sobre o tecido de uma calça de ganga demasiado odiosa.
Foi uma manhã quando fizemos amor pela primeira vez, apesar de que o nosso amor já estava feito muito antes disso. Talvez porque naquela altura só contávamos com esses espaços nas primeiras horas do dia, quando o amanhecer estava a despontar e acordávamos ansiosos de que chegasse o momento do encontro. E depois viriam as tardes, que pode que não fossem tão premonitórias, mas muito especiais, de facto. Quando se aproximava o meio-dia e eu alegremente preparava-me para os encontros na cidade.
O nosso amor ia amadurecendo, e com ele nós, estas vidas tristes e arrependidas por causa da distância, mas felizes porque apesar de tudo nos sentíamos próximos.
Lembro-me do tempo em que não tínhamos telefone e trocávamos mensagens graças a um caderno de apontamentos e a um cúmplice momentâneo. E depois de toda esta feliz recordação, lembro-me das nossas situações contemporâneas, estas que estamos a construir e a destruir. Um russo fala que até os grandes reformadores da sociedade foram criminosos, porque ao promulgar novas leis, aboliram as antigas que eram mantidas como sagradas. É por isso que digo que para continuar a construir temos de demolir algumas coisas, exorcizar as nossas falhas, praticar uma purificação na nossa relação de modo a não a deixar morrer.
Talvez eu não consiga perceber-te totalmente, é muito provável. Mas continuo aqui, a tentar dizer-te que quero interpretar os códigos das tuas angústias e que tomemos um caminho de mãos dadas. Talvez não uma solução radical e imediata, mas uma solução que sirva para ajustar o equilíbrio desta relação que está a cambalear como um castelo de cartas no assento de uma locomotiva a todo o vapor.
Esta carta é um símbolo do meu compromisso. Sinto-me desconcertada porque sei que exigi muito de ti e na tua circunstância, não foste capaz de satisfazer os meus caprichos, não porque não o desejavas, mas sim porque a natureza da tua tristeza absorveu-te e não pude advertir-te senão até agora, quando amanhece o dia após esta madrugada de angústia.
Talvez as manhãs sim sejam premonitórias. Porque justamente agora chega-me a imagem dum futuro hipotético, com o teu corpo cálido descansando junto ao meu num abraço matinal, num despertar cheio de sonho, quando o orvalho tenha destilado o suor sobre as ervas próximas e o primeiro crepúsculo do dia evidencie o calor que não será do sol, mas sim do nosso despertar.
Tua hoje, amanhã e sempre.
CAPÍTULO TRÊS
A nossa história começou no liceu. Uma rapariga exaltada gritava a sua reclamação contra o reitor com uma voz trovejante. Agraciada era Eloísa. Magra, com a sua cintura de porcelana e rosto angelical, o seu coque atrás e o seu carisma a transbordar de energia juvenil. À medida que nos fomos conhecendo, pouco a pouco, uma proximidade disfarçada de amizade aproximou-nos. O momento mais importante dos recessos era poder vê-la e cumprimentá-la com o olhar. As minha manhãs eram dedicas a ela. Gradualmente as minhas ilusões titubeavam; às vezes, exaltado, não cabia em mim, porque me escolhia para falar do seu recreio; outras vezes triste, porque gastava o seu tempo na azáfama do seu grupo de amigos.
Uma manhã, depois de sair da escola e de ter participado nalguns jogos de uma feira que tinha sido montada na aldeia, fui por uma viela, que não era tão habitual nos meus trajetos, com a intenção de me ir para casa. Ouvi alguns gritos que vinham de atrás. Ao longe, uma malta de raparigas com uniformes desarrumados agitava as mãos para me aproximasse delas. Um parque, enegrecido de gravilha, ofereceu-nos o seu piso como o único lugar para sentar. Os comentários cheios de frivolidade (dos quais eu era alheio) daquelas ninfetas impediam-me de participar da conversa. Sobressaí pelo meu silêncio e voltaram-me o olhar. Diz-lhe, disse-me uma rapariga com sardas olhando para Eloísa. O nervoso tomou-me conta. Lembrei-me que há uma semana tinha acordado com a clarividência de estar apaixonado. Tentei refazer um discurso amoroso que tinha revisto alguns dias antes, mas as palavras voaram para uma dimensão impossível de atravessar. Ri com resguardo. Foi aí que escutei a expressão: Digam-se. A amiga mais chegada da Eloísa foi quem expressou isto, o que me estimulou a falar. Olhei-a. Ela estava sentada com as pernas cruzadas na posição de lótus.
Não tinha passado nem um minuto para que um curto beijo (curto no corpo, mas substancial no interior) se fizesse presente sob o amparo dos olhares expectantes das raparigas. O grito juvenil das companheiras que tinham ficado suspensas diante da minha declaração de amor ressoou em ritmo, misteriosamente unânime, como se preparado com antecedência, revelando a consumação do ritual ao tocar a sua boca com a minha e finalmente extinguindo a virgindade labial da sua querida amiga.
Alguma vez fui virgem. Sempre pensei que o primeiro homem a quem eu daria a minha pureza seria ele. Esse sentimento de coceguinhas surgia-me cada vez que acabava de ler as suas cartas de amor, inteligentes, apaixonadas e ridículas, como todas as cartas de amor devem ser. Afinal, tínhamos um relacionamento de alguns anos.
Mas afastei-me do assunto, minha cara amiga, e uma vez que insistes em conhecer a minha história, vou continuar a tentar concluir o meu relato.
Se há uma coisa que não foi apagada da minha memória, mais do que o registo visual, é o cheiro dos seus corpos. Se alguma vez me pedissem para identificar algum deles pela natureza da sua construção, tenho a certeza de que erraria mais na minha exploração do que se o fizesse pelos seus cheiros.
O homem silencioso, a quem preferi chamar mudo ao longo dos anos, tinha um cheiro particular a óleo de máquina, como se o seu trabalho fosse lubrificar as engrenagens de mecanismos complicados durante todo o dia. O bojudo cheirava a cebola rança, um fedor que emanava das suas axilas que se intensificava à medida que as gotas de suor da sua testa caíam sobre o meu rosto. O jovem cheirava a canela, mas por vezes deixava na atmosfera uma fragrância nauseante de frutos do mar macerados.
As investidas do verme gordo eram as mais atrozes. Ter o peso da sua corpulência áspera e repulsiva foi o menor de todos em comparação com senti-lo dentro de mim.
CARTA TRÊS
Sofre mais quem espera pela carícia do seu amor, ou a tristeza de não ter ninguém por quem esperar?
A Poetisa
Um francês afirmou que as cartas de amor são escritas começando sem saber o que vai ser dito e terminam sem saber o que foi dito.
Sempre