Ouvi um ruído em uma árvore próxima e me escondi no matagal rapidamente. Já me haviam encontrado, nu e desprevenido, certamente iriam me matar sem piedade alguma, sacrificar-me como a um vil animal. Não queria morrer. Não poderia tê-los despistado? Não merecia um pouco de tranquilidade? Não havia sofrido o suficiente com as formigas? As imagens de Juan metralhado pelos rebeldes apareceram na minha cabeça como uma sucessão de curtos flashes, e o corpo sem vida de Alex sentado no avião após o choque, com o sangue escorrendo pelo rosto, me atormentou mais uma vez. Imaginei-me sangrando por vários buracos no meu corpo produzidos pelos disparos dos rebeldes, jogado ao chão ao pé de uma grande árvore, eles rindo e eu agonizando. A dor… Observei atentamente entre as folhas das árvores e finalmente descobri a origem do som: um macaco de uns cinquenta centímetros de altura com uma cauda de igual comprimento, a cara azulada, a cada lado entre olho e orelha uma banda de pelo escuro, uma banda transversal clara em cima dos olhos, a maioria do corpo pardo-amarelado e a garganta, o peito e o ventre brancos11. Talvez não estivesse predestinado a morrer nesse dia. Pouco a pouco foram aparecendo mais e se juntaram cinco deles, saltando de galho em galho e lançando alguns gritos agudos. Deviam estar jogando ou algo assim, se empoleiravam em um galho e o agitavam com energia enquanto gritavam. Na melhor das hipóteses estavam na época do cio, não fazia ideia, mas era um espetáculo grandioso. Meu coração voltou pouco a pouco a bater no seu ritmo normal. A última coisa que vi foi um deles pegar do chão algo que de longe me parecia uma lacraia e comê-la.
Na outra margem do rio apareceu outro macaco de forma parecida mas com cores diferentes. Esse tinha a cara negra, costeletas e barba brancas que continuavam no peito e parte dos braços. Sua cor era mais enegrecida e tinha uma mancha triangular avermelhada-alaranjada no lombo. Era maior que o anterior e bem mais robusto12. Bebeu um pouco de água, levando-a à boca com a mão e desapareceu. Fiquei um pouco observando os outros a jogar e saltar. Era uma experiência única, que nunca pensei que chegaria a viver. Mais uma vez me lembrei de meus amigos mortos e de como eles curtiriam estar vendo isto, principalmente o jovial Alex, sempre tão curioso sobre todas as coisas. Agora com quem comentaria estes momentos, com quem os compartilharia? Não havia ninguém que os houvesse vivido comigo, que pudesse entendê-los. Não! Não devia pensar nisso, não me ajudava a seguir adiante e agora o que precisava era juntar a maior quantidade de energia possível para poder sobreviver.
Sair desta maldita selva deveria ser o meu único objetivo. Escapar deste inferno verde.
Descalcei os tênis, torcendo-os um pouco para que a água se escorresse e os enganchei na ponta de um galho para que secassem. Então, peguei a garrafa de água e procurei um local com água corrente para enchê-la. Parecia-me haver lido que era pior coletar de lugares onde a água estivesse parada porque haveria mais possibilidades de que não fosse salubre ou tivesse algum tipo de bichos. Claro que podia ter me lembrado disso antes de beber. Meu corpo inteiro não parava de arder, ainda que com menor intensidade do que antes. Sentia a coxa latejar e quando me virei para ver se havia algum ferimento, localizei uma sanguessuga que ficou grudada à minha perna. Era uma espécie de lesma, talvez mais fina. Primeiro me assustei, logo reagi e pensei em como soltá-la. Se mal me lembrava, podia-se soltar as sanguessugas com sal ou queimando-as. Saquei o isqueiro e aproximei a chama do animal, até que ele se encolhesse, momento em que aproveitei para desgrudá-la com a navalha. Onde havia estado agora só restava uma mancha vermelha, e uma gota de sangue exsudava da borda. Queimei a ponta da navalha com o isqueiro e cauterizei a ferida com cuidado. Não tinha nem ideia se as sanguessugas infectavam ou não a ferida que produziam, mas não queria me arriscar. Doeu tanto que tive que fazer grandes esforços para não gritar com todas as minhas forças. Verifiquei o resto do meu corpo para ver se não tinha mais alguma, mas era a única. Agora na perna tinha a forma da ponta da minha navalha gravada ao fogo. Ia fazer uma tremenda bolha. Talvez não devesse ter feito essa barbaridade.
A preguiça tomou o controle do meu corpo e decidi me dar uma manhã livre. Tantas emoções seguidas cansavam, estava destroçado e o corpo me pesava enormemente. Procurei um local com sombra e quando me sequei, vesti a roupa e usei a camiseta de lembrança da Namíbia que levava na mochila para cobrir toda a cabeça, inclusive o rosto, para evitar os incômodos e abundantes mosquitos que demarcavam as margens. Antes de me deitar, observei um arbusto que havia por perto, havia visto já diversos como este, com um virtuoso fruto de cor carmim com pequenas sementes azuladas13. Seria comestível? Esmaguei uma formiga desnorteada que ainda não tinha conseguido sacudir da roupa. Fechei os olhos e me deixei levar por um estado de sonolência, de torpor; o calor e a umidade produziam peso nos músculos e na vontade.
Um disparo, uma rajada de alguma arma automática, mais disparos. Pus-me de pé num salto. Ouvia-se na outra margem do rio, ainda que distante. Agora sim que não estava imaginando, iam me encontrar a qualquer momento. Subitamente recuperei a consciência de que minha situação não me permitia relaxar, e que não manter todos os meus sentidos em alerta constante seria certamente a minha perdição.
Rapidamente, catei todas as coisas, guardei a camiseta na mochila, calcei as meias e os tênis e peguei o cajado. Ainda estavam molhados, mas nesse momento não tinha tempo de me preocupar com essas minúcias. Decidi que o melhor caminho possível para chegar a algum lugar seria continuar pelo leito do rio, mas como segui-lo ao lado da margem me parecia muito perigoso, adentrei a selva mais uma vez para passar despercebido entre a folhagem e andar quatro a cinco metros paralelo ao rio. Era um mundo fechado, onde em qualquer direção não via mais que um muro verde impenetrável, sem saída alguma. Quando muito, via três ou quatro metros de distância diante de mim. Logo perdi o rio e, mais uma vez, encontrei-me a caminho de lugar nenhum.
Estive andando a um ritmo às vezes forte e outras vezes mais suave durante toda a tarde com escassos momento de descanso. Justamente para recobrar um pouco o fôlego e escutar se ouviam-se mais disparos. Tive que aguentar permanentemente o som semelhante ao produzido quando se pisa em um charco que faziam meus tênis em cada passo que dava e esporádicos avisos de cãibra na panturrilha. A densidade da folhagem aumentava em alguns momentos, sumindo nas sombras de alguns lugares. Havia mosquitos por todos os lados, não deixavam de me incomodar como se fosse uma batalha sem fim. Às vezes me faziam lembrar os kamikazes japoneses da Segunda Guerra Mundial, lançando-me o ferrão como seu objetivo, sem lhes importar a vida. Os mosquitos eram iguais, jogando-se sobre meu corpo de forma contínua e sem lhes importar as baixas que causavam meus tapas, usando minhas mãos à guisa de artilharia antiaérea. Alguns eram tão grandes que mais que caças de combate pareciam gigantescos bombardeiros, cuja presença propriamente dita já causava apreensão no inimigo. Quando os via aproximarem-se ficava imediatamente tenso, preparado para me esquivar deles. Sempre havia algum com apetite e tinha uma infinidade de picadas pelos braços e pernas, ali onde minha roupa não cobria meu corpo. Algumas estavam inclusive sobre as próprias picadas que as formigas me haviam feito ao acordar. Era uma batalha que estava perdida de antemão, uma luta banal, inútil, já que eles não tinham fim e eu estava cada vez mais cansado. Incomodaram-me tanto que decidi cobrir as partes onde não tinha roupa com terra úmida, formando uma barreira impenetrável para eles. Essa ideia fugaz me salvou. Era difícil me movimentar, sobretudo quando secava, mas seus ataques contínuos eram piores. Graças a esse truque pude me esquecer dos insetos implacáveis durante um bom tempo. Se não consegui a vitória, ao menos uma trégua temporária. Além disso, tive o efeito surpreendente de conseguir que parassem de me picar