É isto.
É nisto que nos tornámos: corações empedernidos junto às teias.
Dar passos em redor da deriva; olhar para cima sem que se reze. Saber que no deserto não existem cruzes, tão só a persistência do vento ecoando com as intempéries. Aguardar as tempestades de areia. Coabitar com as tempestades. Sentir a areia a pesar, deixar que o ar assim nos rasgue os pulmões.
Viver a vida como ela é, com a dor apertada junto ao pescoço.
Soluçar. Persistir no soluço.
Encarar as metástases como rios. Ser como os rios sangrentos onde me habito, os conjuntos de células vibrando-me por dentro das vísceras.
Aguardar a imergência dos organismos, o crescimento inflamando a divisão celular. Os ciclos de vida, o envelhecimento e a morte.
Perscrutar a matéria orgânica. Ser a intensa deriva da matéria. Ser a genética dos corpos, o processamento orgânico dos materiais até à anormal proliferação da divisão celular, um tumor anichado junto ao peito. A germinação cancerígena habitando a viagem linfática, sanguineamente percorrendo os vários órgãos.
A matéria, a inflamação da matéria, o inorgânico protelado no orgânico.
Ninguém jamais venceu a guerra contra o corpo, nem mesmo Jesus, cuja carne sucumbiu ao Martírio da Cruz.
Água. Somos água escorrendo. Náufragos corpos buscando o estridente deserto, uma qualquer mágoa firmando todo este silêncio. De paradeiro incerto, sofridamente nos erigimos de encontro à estranheza do mundo.
Tempos atrás habitámos distantes lugares, longínquas terras vividas em contramão. Antes houve promessas e nas promessas ferozmente nos discorremos. Fomos ferozes de encontro às cidades, ferozmente escorrendo por fora do leito dos rios.
Somos agora regressados a casa. Firmados no sonho, no regresso reerguemos as cabeças decepadas. Somos de novo a afirmativa presença. Afirmativamente presentes apressamo-nos na escavação, no célere augúrio das coisas vindouras.
Antes. Antes houve poetas cantando o declínio.
Agora somos incertos. Incertas certezas desesperando a vicissitude.
Aqui aguardamos o declínio, a escassa sede dos augúrios. Somos agora desertos.
Longinquamente reflexos na mais íngreme estranheza, tornámo-nos náufragos. Náufragos desertos abundando entre as cores.
Gritamos: “aqui somos!”.
Ninguém nos ouve. Ninguém nos ouve porque ninguém há para nos ouvir. Náufragos. Náufragos até ao deserto.
Aqui, desde onde nos perecemos.
Ser o sucesso do corpo; ser amado pelas jovens mulheres antes da noite chegando. Curvilíneo, em curva gravitar o vórtice dos dias; impacientemente percorrer o estrondo do mundo até ao enegrecimento da carne. Ser tangente. Ao contrário da paciência, ser a primeira e última vez de todas as coisas.
Não esquecer nunca: envergar as sístoles e as diástoles como um troféu.
Em queda. Ser em queda. Quedar-me quase exangue de mim e dos outros. Ser farto. Estar farto de tudo e de nada. Procurar as formas e, com as formas, enformar a matéria.
Matar o tédio caindo em todos os precipícios. Cair. Cair e, de seguida, reerguer a queda. Ser a escalada das montanhas. Escalar montanhas com a dúvida às costas. Deixar depois a dúvida incrustada no cume, por cima da estupidez.
De rosto descoberto. Descobrir o rosto para que as lágrimas vertam na nudez. Ser ao contrário da contrariedade do mundo. Deixar que as lâminas me cortem, que o aço incida em minha carne. Tornar-me duro. Ser o aço por dentro.
Não representar papéis além do estritamente necessário. Sobrevir a dor. Não deixar nunca que a discrepância transpareça.
Ser o aço por dentro. Não deixar nunca transparecer que assim não é. Jamais; não esquecer jamais que assim deve ser.
Nasço-me nas palavras que me habitam para que nelas me julgue menos só. Contudo, jamais serei a salvo. Atolada nesta pele até aos ossos, a mentira é uma ferida que por dentro me mina.
Por dentro. Sou as feridas que me sangram.
Nunca fui são, verdadeiramente nunca o fui. Mesmo quando um dia acreditei que os meus passos me conduziriam a algum lugar.
Fui prestes na encarnação de personagens que não sou. Habitei as casas junto aos homens e nelas construí um império de derrotas.
Um dia acordarei com todas as coisas vibrando. Será esse o sinal de que não mais poderei vibrar.
Somos derrotados pela natureza das coisas.
Um dia acordarei com a vontade derrotada.
É inevitável.
É inevitável que assim seja, que os camiões cheguem para fazer a mudança.
Levarão tudo o que fui, todos os livros tragados na fúria, as jovens mulheres onde não mais me perderei.
Um dia será noite. Um dia será noite e a noite ficará.
A noite será íngreme e sem estrelas.
Restarei só.
Restarei só e serei doente, uma doentia mortalha por todos deixada ao abandono. Não restarão preces que mais não sejam estes ramos apontando ao céu.
Um último ato de coragem: sulcarei a terra até que os vendavais me sinalizem. Então, perante os vendavais, erguer-me-ei no dom do abandono.
Jamais vi flores nascer ou vicejar, qualquer outra coisa que não o inabitado desalento. Ainda assim, alguns frutos adoçam o sabor desta derrota: os mortos escrevendo livros para que a vida nos sossegue; como loucos, mentindo tanto quanto possível. Mais ninguém se sentou neste colo a não ser eles, os loucos mortos que me visitam.
Assim me é o mundo desvelado. A rarefação do sentido no esforço da respiração. A inspiração e a expiração expiando o antro das coisas. Todas as derrotas dadas na breve vitória da criação.
Um dia, em tempos idos, a potência do mundo aqui foi dada em ato. O mistério das horas pareceu coisa pouca. Representáramos a presença do fogo a uma distância segura e assim sobrevivemos às queimaduras em nossas peles.
Aperfeiçoo agora a queda e o tempo da queda. Sou suspenso, entre o passado e o futuro. Gravito em torno de algumas memórias, coisas nunca acontecidas. Quando criança esperava que os fósforos me ardessem entre os dedos. Acho que já então previa a preciosidade do fogo, ardendo por entre as coisas. Tudo agora é tão perto que quase sempre me queimo. Antes não era nada assim. Havia uma distância que me separava dos objetos. Essa distância precavia meu corpo das queimaduras. Ardo-me agora tanto que sou quase em cinzas, uma ferida aberta por dentro da pele.
Ardendo-me.
Demora-nos uma vida inteira o apuramento para enfrentar o mar, percorrer a substância das coisas, aquilatar a estrutura