"Pode começar, coroa," Maya anunciou da cozinha.
"Coroa?" Reid disse indignado. "Eu tenho trinta e oito!"
"Estou pronta." Ela riu quando entrou na sala de jantar. "Ah, o jogo de trem." Seu sorriso se dissolveu em um sorriso fino. "Este era o favorito da mamãe, não é?"
"Ah... sim." Reid franziu a testa. "Era."
"Eu sou o azul!" Sara anunciou, agarrando as peças.
"Laranja," disse Maya. “Pai, que cor? Papai, ei?
"Ah." Reid interrompeu seus pensamentos. "Desculpa. Verde.”
Maya empurrou algumas peças para ele. Reid forçou um sorriso, embora seus pensamentos fossem preocupantes.
*
Depois de dois jogos, em que Maya foi a vencedora, as meninas foram para a cama e Reid se retirou para o escritório, uma pequena sala no primeiro andar, bem ao lado do saguão.
Riverdale não era uma área barata, mas era importante para Reid garantir que suas garotas tivessem um ambiente seguro e feliz. Havia apenas dois quartos, então ele usava o pequeno quarto no primeiro andar como seu escritório. Todos os seus livros e objetos de coleção estavam espremidos em quase todos os centímetros disponíveis do quarto de dez por dez do primeiro andar. Com uma escrivaninha e uma poltrona de couro, apenas um pequeno pedaço de carpete gasto ainda era visível. Ele dormiu muitas vezes naquela poltrona, depois de algumas noites tomando notas, preparando palestras e relendo biografias. Estava começando a lhe causar problemas na coluna. No entanto, se ele estivesse sendo honesto consigo mesmo, não seria mais fácil dormir em sua própria cama. O local mudou, ele e as meninas se mudaram para Nova York logo depois de Kate falecer, mas ele ainda tinha o colchão king-size e a cama que tinham sido deles, dele e de Kate.
Ele pensava que agora a dor de perder Kate poderia ter diminuído, pelo menos um pouco. Às vezes acontecia, temporariamente, e então ele passava por seu restaurante favorito ou vislumbrava um de seus filmes favoritos na TV e a dor voltava rugindo, tão fresca como se tivesse acontecido ontem.
Se alguma das meninas sentia o mesmo, elas não falavam sobre isso. Na verdade, elas falavam sobre Kate abertamente, algo que Reid ainda não tinha conseguido fazer.
Havia uma foto dela em uma de suas estantes, tirada no casamento de uma amiga, uma década antes. Na maioria das noites, o quadro ficava invertido, ou ele passaria a noite toda olhando para ele.
Quão incrivelmente injusto o mundo poderia ser. Um dia, eles tinham tudo - um bom lar, filhos maravilhosos, ótimas carreiras. Eles estavam morando em McLean, Virginia; ele estava trabalhando como professor adjunto na vizinha George Washington University. Seu trabalho o fazia viajar muito, para seminários e cúpulas e como palestrante convidado de história europeia ele viajava para escolas de todo o país. Kate estava no departamento de restaurações do Smithsonian American Art Museum. Suas garotas estavam se desenvolvendo. A vida era perfeita.
Mas como Robert Frost nos mostrou, nada dura para sempre. Era uma tarde de inverno, Kate desmaiou no trabalho, pelo menos é o que seus colegas de trabalho acreditavam ser quando ela de repente ficou mole e caiu da cadeira. Eles chamaram uma ambulância, mas já era tarde demais. Ela foi declarada morta assim que chegou no hospital. Uma embolia, eles disseram. Um coágulo sanguíneo tinha ido para o cérebro e causado um acidente vascular cerebral isquêmico. Os médicos usam termos médicos pouco compreensíveis, sempre que possível durante a explicação, como se de alguma forma aquilo amenizasse o golpe.
O pior de tudo, Reid estava fora quando aconteceu. Ele estava em um seminário de graduação em Houston, Texas, dando palestras sobre a Idade Média quando recebeu a ligação.
Foi assim que ele descobriu que sua esposa havia morrido. Um telefonema, do lado de fora de uma sala de conferências. Depois veio o voo de volta para casa, as tentativas de consolar suas filhas no meio de sua própria dor devastadora e a eventual mudança para Nova York.
Ele se levantou da cadeira e girou a foto. Ele não gostava de pensar sobre tudo isso, o fim e o resultado. Ele queria se lembrar dela assim, na foto, a Kate animada. Era isso o que ele escolheu ter como lembrança. Havia algo mais, algo bem no limite de sua consciência, algum tipo de memória nebulosa tentando emergir enquanto ele olhava para a foto. Quase parecia déjà vu, mas não do momento presente. Era como se seu subconsciente estivesse tentando empurrar alguma coisa.
Uma batida repentina na porta o assustou de volta à realidade. Reid hesitou, imaginando quem poderia ser. Era quase meia noite; as garotas estavam na cama há algumas horas. A batida forte veio novamente. Temendo que isso acordasse as crianças, ele se apressou em responder. Afinal, ele morava em um bairro seguro e não tinha motivos para temer abrir a porta à meia-noite.
O vento rigoroso do inverno não foi o que o congelou. Ele olhou surpreso para os três homens do outro lado. Eles eram, com certeza, do Oriente Médio, todos de pele escura, com barba escura e olhos profundos, vestidos com grossas jaquetas pretas e botas. Os dois que ladeavam os dois lados da porta eram altos e esguios; o terceiro, atrás deles, tinha ombros largos e era volumoso, com uma carranca supostamente perpétua.
"Reid Lawson," disse o homem alto à esquerda. "É você?" Seu sotaque soava iraniano, mas não era denso, sugerindo que ele passou uma boa quantidade de tempo nos Estados Unidos.
A garganta de Reid ficou seca quando ele notou, sobre os ombros dos caras, que uma van cinza estava parada no meio-fio, e com os faróis desligados. "Hum, me desculpe," disse ele. "Você deve ter confundido a casa."
O homem alto à direita, sem tirar os olhos de Reid, levantou um celular para seus dois parceiros verem. O homem à esquerda, o que fazia a pergunta, acenou com a cabeça uma vez.
Sem avisar, o homem volumoso avançou, enganosamente rápido devido ao seu tamanho. Uma mão carnuda alcançou a garganta de Reid. Reid acidentalmente escapou, ficou fora de alcance, tropeçando para trás e quase tropeçando em seus próprios pés. Ele se recuperou, tocando com os dedos no chão de ladrilhos.
Quando ele deslizou para trás para recuperar o equilíbrio, os três homens entraram em sua casa. Ele entrou em pânico, pensando apenas nas meninas dormindo em suas camas no andar de cima. Ele se virou e correu até a cozinha. Ele olhou por cima do ombro, os homens começaram a perseguição. Celular, ele pensou desesperadamente. Estava em sua escrivaninha no escritório e os caras bloqueavam o caminho.
Ele tinha que levá-los para longe da casa e longe das meninas. À sua direita estava a porta do quintal. Ele abriu a porta e correu para o deck. Um dos homens xingou em uma língua estrangeira, árabe, ele imaginou, enquanto corriam atrás dele. Reid saltou sobre o corrimão do deck e pousou no pequeno quintal. Uma descarga de dor subiu pelo tornozelo dele por causa do impacto, mas ele a ignorou. Ele contornou um dos cantos da casa e se encostou na fachada de tijolos, tentando desesperadamente acalmar sua respiração irregular. O tijolo estava gelado e a leve brisa do inverno o atravessou como uma faca. Os dedos dele já estavam dormentes - ele saiu de casa apenas com as meias. Arrepios subiam e desciam pelos seus membros.
Ele podia ouvir os homens sussurrando um para o outro, com vozes roucas e apressadas. Ele contou as vozes distintas - uma, duas e depois três. Eles estavam fora da casa. Bom; isso significava que eles só estavam atrás dele, e não das crianças. Ele precisava chegar até um telefone. Ele não podia voltar para casa e colocar em risco suas garotas. Ele não conseguiria nem bater na porta de um vizinho. Espere, havia uma caixa amarela de chamadas de emergência montada em um poste de telefone no final do quarteirão. Se ele pudesse chegar lá...
Respirou fundo e correu pelo quintal escuro, atrevendo-se a entrar no halo de luz das lâmpadas da rua. Seu tornozelo latejava em sinal de protesto e o choque do frio provocou picadas em seus pés, mas ele se forçou a se mover o mais rápido que pôde. Reid olhou por cima do ombro. Um dos homens altos o viu. Ele gritou para seus companheiros, mas não o perseguiu mais. Estranho, Reid pensou, mas ele não parou para questionar.