O brasileiro permaneceu no chão magoado. Ainda que o autor da falta tivesse sido advertido, a reação dos adeptos àquela intervenção foi de unanime jubilo. Houve alguém que começou a explodir uns foguetes, numa espécie de descarga. No fim foi um, isolado, que para Ricardo pareceu muito mais forte mas a realidade fora apenas mais próximo. Ficou tonto; depois de um instante de surdez completa ficou com a vista ofuscada, tanto que sentiu a necessidade de fechar os olhos e de cobrir-se os olhos com as mãos.
Abriu-os de novo logo em seguida, recuperando plenamente a posse de todos os seus sentidos. Incrédulo, deu-se conta de estar a sentir uma pontada de dor terrível no tornozelo. A dor atenuava-se enquanto um senhor com fato de treino amarelo e azul lha atava apertadamente.
“Vai passar logo. Podes voltar ao jogo, não é nada”, disse-lhe enquanto Ricardo, estupefacto, compunha-se usando meias curtas e botas para futebol, e de estar sentado no meio campo do jogo, percebendo distintamente a humidade da relva a as cocegas dos fios da relva na pele das pernas.
“Força, ânimo: experimenta levantar-se”, e enquanto restabelecia-se em pé descobrindo que efetivamente a dor tinha-se transformado num mínimo mal-estar, ouviu a multidão do estádio a assobiar e gritar em voz alta: Ra-ul, Ra-ul”.
Olhou para cima, e viu centenas, talvez milhares de pessoas que aclamavam a ele, ou melhor a Raul, ou talvez era a mesma coisa.
“Sim”, pensou, “talvez depois irei ao encontro do especialista: mas neste preciso momento não posso dececioná-los”.
Começou a movimentar-se e a correr. “Talvez é um sonho como esta noite”, pensou. Recebeu logo de imediato um passe, mas perdeu a bola inoportunamente. Alguém assobiou. Não, não era exatamente como no sonho da noite anterior. Recebeu uma outra bola e não conseguiu tão-pouco controla-la; desta vez os assobios foram muito sonoros. Os outros é que sabiam jogar, pensou.
Apercebeu-se de que não podia ficar no meio campo. Foi absorvido por um desconforto, um desespero, que a dor no tornozelo que pareceu reagravar-se. Deixou-se cair no chão, pensando: “se é um mau sonho, talvez despertarei”. E pelo contrário não despertou. Permaneceu no chão, com as mãos que cobriam os olhos, mais pela vergonha do que pela dor, até à primeira pausa do jogo voltou o mesmo senhor com o fato de treino amarelo e azul.
“O que tens, o que te deu?”, Perguntou-lhe o tal.
“Não, não posso continuar a jogar. Tenho que ser substituído, absolutamente. É a única coisa que se deve fazer. Depois fingindo de estar a coxear e segurado daquele que evidentemente era o medico da equipa, foi carregado para além da linha lateral do campo, atrás do banco. Não obstante o desagrado do treinador, com grande alívio para Ricardo (Raul para todo o resto do mundo), depois de alguma certificação da parte do médico, tomou lugar no banco.
Era divertido assistir a partida de tão perto, embora o espetáculo tinha baixado muito pela ausência daquele que até ali tinha sido precisamente o melhor em campo. Mas quem era pois esta pessoa, pensou Ricardo: realmente sou eu? Esforçou-se em olhar para a bancada, donde lhe resultava que um grupinho de adeptos entre os quais ele mesmo o Ricardo estivesse a seguir o encontro. Esperava de conseguir ver-se lá em baixo, mas a distância era grande.
O que deveria fazer? Adaptar-se a esta inesperada e absurda viragem que tomara o curso da sua vida; ou contrariá-la, procurando de trazer de novo a sua existência sobre os carris da normalidade? No princípio, decidindo de não decidir, respondeu-se que por enquanto preferia desfrutar a partida, depois haveria de pensar nisso.
“Riccardo! Raul, Raul. Sou Riccardo.” De repente, na confusão e no alarido de vozes do estádio cheio, conseguiu distinguir estas palavras. “Raul, sou Ricardo Boccadoro. Por favor, queria falar contigo.”
Desta vez estava certo daquilo que tinha ouvido: fora pronunciado o seu nome, alguém se dirigia a ele. Ricardo levantou-se, procurando descobrir nas suas costas quem o estivesse chamando; mas atras de si o campo visual estava completamente tapado pelo banco.
“Nos vemos dentro de cinco minutos no balneário: por favor, Raul, deve comparecer.”
“Será que o conheces este rapaz?”, Perguntou-lhe um colega da equipa sentado ao seu lado.
“Sim, o conheço.” Por momento quis perguntar-lhe como é que chegaria aos balneários; mas depois disse que se viraria sozinho até ali chegar, sem despertar inúteis suspeitas.
Coxeando introduziu-se para baixo pelas escadas num corredor que parecia vazio, à parte um agente de segurança.
“Raul, duas palavras rápidas para a Radio Campeão?”, Pediu-lhe um jovem ofegante, bem vestido e equipado de auscultadores e microfone, surpreendendo-o por detrás.
“Por favor, agora não, deixe-me ir mudar. É daqui o meu balneário, não é?”
“Sim, mas como é que te sentes? O tornozelo dói?”
“Sim muito. Mas agora deixem-me em paz.”
Abriu a porta daquele que lhe parecia ser um dos balneários. Não vendo ninguém estava para fechá-la, mas ouviu alguém que lhe chamava:
“Ricardo, estou aqui.”
Ficou de boca aberta. Diante dele havia um outro, ele mesmo que trazia um capote e um par de calças que bem conhecia: faltava-lhe apenas o seu pequeno cachecol branco-vermelho.
“Mas é incrível: és semelhante distante de mim!”
Permaneceu um pouco a observar-se, incrédulos; depois o outro, que daqui em diante por comodidade o apelidamos Raul, o levou consigo diante a um espelho.
“Existe algumas diferenças. Eu era um pouco mais alto, com uma massa muscular mais desenvolvida e sem esta pinta feia na maxila. Enfim, era um pouquinho mais lindo, agora sou um bocadinho mais feio.”
“Claro. Em contrapartida eu tenho o tornozelo que antes estava bem e que agora me faz mal.”
“Escuta: não sei o que terás tramado, mas parece que pelo menos não tenha esquecido o sotaque português e a habilidade de jogar a bola. O que é que achas se mudássemos a roupa, antes de tramar qualquer outra asneira irremediável?”
“Sim, mudamos a roupa: sentir-me-ei mais à vontade. Em todo o caso dou-te a minha palavra eu não fiz nada. Apenas estive ali, no teu lugar.”
“Espero apenas de não perder a camisola de titular, depois de tudo isso.”
Raul despiu-se e tomou rapidamente um duche. Também Ricardo decidiu de fazer o mesmo.” Podes usar o meu shampoo e as minhas coisas”, disse-lhe Raul.
Vestiram-se de novo cada um com a sua roupa civil. Aquela de Raul era notavelmente mais elegante.
“Deixo-te o meu número de celular para qualquer eventualidade,” disse-lhe Raul tirando da sua carteira um cartão-de-visita. “Não é para dar a ninguém, é o meu número superprivado. E acima de tudo confio em ti: não digas nada do que aconteceu, sobretudo à imprensa.
Caso contrário poderias estragar a minha carreira.” Tirou também duas notas de grande valor: “estas são pelo incómodo, e para a visita medica. Boa sorte.” Raul apertou-lhe a mão para despedir-se dele, e foi-se embora.
“Espera: quem nos garante de que não vai acontecer de novo?” Objetou Ricardo.
Raul parou para refletir. “Tens razão. Poderia acontecer ainda. Talvez é melhor que permaneçamos juntos por um instante. Mas procuremos de não deixar-se notar.”
Com a gola levantada para esconder-se o mais possível, Raul caminhou junto com Ricardo, embuçado no cachecol branco-vermelho encontrado enrolado no bolso do capote, e escapuliram-se para fora