O Inferno. Callet Auguste. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Callet Auguste
Издательство: Public Domain
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Жанр произведения: Зарубежная классика
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Inferno

      Deus não quiz anniquilar Satanaz nem perdoar-lhe. Creou o inferno, e precipitou-o lá com os seus cumplices.

      Fogo, frio, esvahimentos de fome, tedios da saciedade, golpes de ferro, trances de agonia, inveja, remorsos, tudo isso não basta a dar-nos muito em sombra idêa dos tormentos d'aquelle abysmo. Corôa-lhe o horror não ser ahi conhecida a morte. Se a morte lá podesse entrar, a esperança iria com ella, deixando entrever o nada como acabamento de tão enormes penas.

      Se, porém, foi recusada a Satanaz esta miseravel consolação, goza-se de outra em desforra. Deus, que o reduziu á desesperação, deixou-lhe a faculdade de o molestar, atravessando-se-lhe nos intentos, contrariando-lhe as leis, multiplicando e perpetuando o mal por toda a parte, salvante o ceo.

      É o inferno o senhorio de Satanaz; mas não cabe lá. É-lhe toda a creação campo franco para a sua malfeitora actividade. Verdade é que leva comsigo, onde quer que vá, a sua immortal tristeza, e, pelo tanto, toda a parte lhe é inferno. Não obstante, é incomprehensivel que elle de lá sahisse, se lhe não fosse algum hediondo regalo n'isso de fazer tudo quanto quer, excepto o bem – poder singular que Deus lhe concedeu, e elle exercita incansavelmente, seu prazer unico, necessidade propria da sua desgraça, e que hade durar tanto como elle.

      Tal é o castigo de Satanaz. Crime e castigo são por egual espantosos e inintelligiveis.

      Agora, vejamos o que d'ahi resulta.

      III

      Paraiso terreal

      No segundo e terceiro capitulos do Genesis, refere Moysés a creação e queda do homem. Esta breve passagem foi diffusamente glossada por hebreus e padres da Egreja, e raro haverá quem a não haja ouvido explicar do pulpito, como eu brevissimamente a vou explicar, acrescentando-lhe reflexões minhas.

      Adão e sua companheira tinham recebido no Eden uma lei moral simplissima e muito clara: era-lhes licito saborear todos os fructos d'aquella mansão de delicias, tirante o fructo d'uma só arvore: feito isto, a sua felicidade seria perfeita. Conta-se que elles estavam alli mais innocentes que os recemnascidos e ao mesmo tempo mais instruidos que os anciãos d'hoje em dia. Obedecia-lhes a natureza e elles comprehendiam-lhe a voz. Cuidados nenhuns, nenhumas lagrimas, primavera eterna, e a mocidade immorredoira em todo o seu ser. Deus folgava descer-se do ceo para n'elles contemplar a sua viva imagem; e então lhes mostrava seu rosto e lhes fallava.

      Entretanto Satanaz foi esperal-os debaixo da arvore da Sciencia, cujo fructo lhes fez comer. Não se corromperam per si mesmos como Satanaz; mas eram livres e o tentador estava alli. Quem tinha seduzido os anjos como deixaria de seduzil-os a elles? Que considerações o reteriam? Não receia Deus por que Deus lhe não póde aggravar o supplicio, pois que esse supplicio é eterno, e o inexprimivel horror de tal castigo consiste na eternidade d'elle. Pelo que respeita á piedade, é sentimento que Satanaz não conhece, pois que Deus lh'a não mostrou a elle, o primeiro de todos os seres que a necessitára. Á semelhança das outras creaturas, tem sómente aquillo que recebe; e o que brilha em si não é o amor divino, é a divina colera que o conserva devorando-o.

      Quaes foram as consequencias da queda?

      IV

      A maldição

      Não aceitou Deus as desculpas de Adão e Eva. De tal modo o irritou a desobediencia, que, no auge da sua ira, amaldiçoou-os e com elles a terra que os continha: dupla maldição que abrange alma e corpo, espirito e materia, eternidade e tempo – o homem todo na intimidade de seu ser immortal e nas condições exteriores da sua existencia transitoria.

      De feito, foi Adão condemnado á morte. O corpo reverteu ao pó e a alma cahiu no inferno. Esperando, porém, este ultimo castigo, foi-lhe forçado soffrer outro n'este mundo. Cahiu sob o poder de Satan. Os miraculosos conhecimentos, que elle tinha, perdeu-os para sempre.

      Repulso do Eden, nada sabia do que tinha sabido n'aquelle lugar; e, como a terra tambem se havia transformado, caminhava elle inexperiente atravez dos estorvos d'uma vida nova. Precisões, lavor ingrato, enfermidades, padecimentos de toda a natureza, desconfianças, medos, saudades inuteis, desejos inquietos acompanhavam o vagabundo par. Satanaz seguia-os, julgando-os ainda bastante felizes sobre a terra maldita, onde, se elle não fosse, o soffrimento seria expiação, e a morte resgate.

      Penetremos mais dentro n'este mysterio, e consideremos com os theologos quaes foram e ainda são hoje as deploraveis consequencias d'aquelles successos.

      V

      Consequencias da maldição

      Os filhos de Adão que ainda não eram nascidos no momento da culpa, e os filhos de seus filhos até á derradeira geração foram condemnados com elle, como se tivessem peccado. Comprehende-se que elles não fossem melhores que seus pais: peiores é que elles se tornaram. O mais velho d'esses reprobos matou seu irmão, e a impiedade humana foi crescendo até ao diluvio para recomeçar, ao sahir da arca, durante o somno de Noé.

      Uma tal punição não podia gerar outros effeitos.

      Considerai que nascemos aviltados, pervertidos, embriagados do vinho que outros beberam, escravos d'um poder occulto e maligno, odiados de Deus, odiando a Deus, só bastantemente livres para praticar maldades e merecer por isso novos castigos; incapazes todavia de praticar o bem. Está Satanaz no manancial onde bebemos a vida; está nas fontes que a nutrem, no seio de nossa mãe e no seu leito; a si nos attráe, encorporando-se na luz, na agua, nos alimentos, no ar que respiramos, na voz que nos encanta o ouvido, na fragrancia que as auras nos trazem, no amigo que nos abre os braços. Comnosco se identifica e nos enche de seus cavilosos e insaciaveis appetites.

      De fóra chama-nos com uma doce voz, e com um interno aguilhão nos esporêa para onde nos chama. Então nos cerca, invade-nos, possue-nos, e isto não é ainda senão parte do nosso castigo. O inverno que nos engorgita os membros, a fome que nos prostra, a trovoada que arrebata as sementeiras, a febre paludosa que nos mata os filhos, as forças que se vão quando a experiencia chega, estes flagellos todos da natureza contra nós desenfreados, estas necessidades inexoraveis, amargas privações, e exulcerantes desenganos são tambem parte do nosso castigo. Mas ainda não é tudo: a nossa insanavel ignorancia, orgulho, fraqueza, toda a corrupção do nosso ser é parte integrante do mesmo castigo, não do peccado original, cumpre notar, mas do castigo, pois que a transmissão do peccado original é já de si um castigo. E não pára aqui a maldição; pelo contrario, quando ella se nos mostra mais terrivel é n'este estado a que nos reduziu, manietados pelas cadeias que nos forjou, porque as culpas que resultam d'esta corrupção natura e involuntaria que é um castigo, d'esta possessão diabolica que é um castigo, e de tantas dores accumuladas que são castigo – taes culpas chamam sobre nós outros castigos. Qualquer lapso é reprehensivel; o menor deslize é espiado e marcado; o minimo murmurio é uma offensa.

      Taes são, consoante a theologia dos hebreus, adoptada e assignada pelos padres, as relações do homem com Deus e de Deus com o homem.

      Detestam-se. Desde a sahida do Eden que se digladiam em duello sem fim, posto que desigual. Um primeiro crime gerou a colera divina; mas do primeiro acto da colera divina surtiram outros crimes, os quaes geraram novas coleras, e continuamente, em face um do outro, a colera e o crime se fecundam e reproduzem sem descanso. Os homens n'esta lucta são incansaveis como Deus, e, posto que trespassados e sanguinolentos e esmagados, ameaçam e conspiram ainda.

      De semelhante espectaculo não ha nome condigno! Está o odio por toda a parte, na terra, no inferno, no ceo, nas creaturas e no Creador.

      Accrescentemos que o que melhor se comprehende neste systema é a rebellião do homem, porquanto a nossa sorte é mais miseravel que a sorte de Adão, e cem vezes mais miseravel que a de Satanaz. Mas faz-se mister esclarecer este ponto, antes de passar além.

      VI

      Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz

      Em verdade nenhuma similhança temos com os habitantes do paraiso terreal; não lhes herdamos o saber adquirido sem trabalho, nem a pureza, nem a liberdade, que se agitava a bel-prazer