O caso da Satsuki fê-la pensar bastante. De repente ela apercebeu-se do quão desprotegidas estavam as mulheres na sociedade, a situação era ainda mais precária do que ela tinha imaginado. E jurou para com a sua consciência de que iria fazer de tudo para ser independente. E que se algum dia tivesse filhos, nunca os venderia, como se fossem gado. Seria melhor viver em pobreza com eles. E certamente irá reencontrar e resgatar a Satsuki. A Ōi ainda não sabia que o seu rendimento nunca lhe iria permitir realizar tal façanha.
Passaram-se dois anos desde esses eventos (e três desde o casamento dos ratos). Era um verão quente e abafado. A Ōi não sabia quase nada da Satsuki. Embora Hokusai tenha dito à sua filha que tinha visto uma menina parecida com ela em Yoshiwara, próxima de uma oiran. Aparentemente, Satsuki é uma sortuda, e tornou-se aprendiza de uma cortesã da classe alta, isto se podemos chamar sorte a este destino. Mas o artista não a voltou a encontrar, pois quando voltou para pintar um bijin-ga, ele falou mais com aprendizas mais velhas e as próprias cortesãs. Era muito difícil este conseguir falar com as aprendizas mais novas.
... Nessa noite, como era seu costume, a pequena Ōi de dez anos dormiu no seu quarto. Próxima dela num outro futon12, Tatsujo dormia pacificamente. Ōi, pensando para si mesma sobre várias coisas, sobre ela própria, e a sua irmã, com quem continuava a ser um pouco traquinas.
Vale a pena lembrar que durante os três anos que se passaram, para além da morte de Shotaro e a partida da Satsuki, muitas coisas mudaram na vida das duas irmãs.
Deveras mais bonita, mais crescida e em tudo a aparentar os seus quinze anos. Também ela se interessou pela pintura e claramente que obteve sucesso nesta área. Mas não era ao desenho que ela queria dedicar a sua vida. Em vez disso, a rapariga que no ano passado celebrou a maioridade sonhava em casar-se. Escolhendo até um candidato decente para tal, o irmão mais velho do Shotaro, Sotaro. Que fez este ano quinze anos, e recíprocava os sentimentos de Tatsujo.
Os pais de Sotaro, bem como, Hokusai e Okiko estavam bastante felizes com o par. Concordavam plenamente em como os seus filhos formavam um par perfeito. Com a maior brevidade decidiram contactar um astrólogo para escolher uma data auspiciosa para a cerimónia do casamento. Para além disso, o vestido de noiva também já estava pronto.
Também a Ōi cresceu durante esse tempo. Por enquanto, não eram claros os traços femininos, mas deixou crescer um longo e esplêndido cabelo. Quando não o usava apanhado, deixava-o cair pelas costas como se fosse um rio negro com vida própria. Quando iluminada pela luz das velas a menina assemelhava-se a uma criatura mítica ou sobrenatural. Ela não suspeitava o quanto a sua irmã Tatsujo a invejava pelo seu belo cabelo, pois ela própria não o conseguia colocar do mesmo jeito.
A Ōi também aprendeu a dominar vários tipos de laços para laçar o obi. Mas contrariamente à Tatsujo, ela nunca sonhou em casar-se. Em vez disso, a menina estava cada vez mais convencida de que iria dedicar toda a sua vida à pintura. Não importa como: Seja apenas a ajudar o seu pai para que dê andamento aos seus trabalhos, ou a desenhar as suas próprias obras.
A opinião de Hokusai, era de que a sua filha mais nova fazia um enorme sucesso no meio artistico, especialmente a desenhar mulheres.
"A Ōi já desenha mulheres muito bem. Se assim continuar, em poucos anos chegará ao meu nível, e mais tarde irá superar-me por completo," o seu pai sorria de felicidade.
Hokusai costumava ficar triste ao pensar que nenhum dos seus filhos se tinha tornado artista. Era por esse motivo que ficava bastante orgulhoso pelas suas duas filhas mostrarem interesse na pintura, em especial a mais nova.
Ele já confiava bastante na Ōi, ao ponto desta o ajudar nos seus trabalhos. Claro que não lhe entregava trabalhos difíceis, mas confiava-lhe sem problema a tarefa de misturar as tintas, e deixava-a fazer os esboços de detalhes secundários.
... A Ōi suspirava. Estava uma noite de verão abafada, e não conseguia dormir. Olhava com inveja a sua irmã a dormir, a menina pensava:"Também gostava de ser assim, de adormecer rapidamente a qualquer altura sem qualquer problema independentemente do clima. A Tatsujo dorme que nem uma pedra faça chuva ou faça sol! Como é que ela consegue?"
A Ōi tinha um olhar saudoso ao observar o quarto, iluminado apenas pelo luar, que conseguia passar pelo shogi entreaberto13. Com o passar dos anos pouca coisa mudou na casa: o interior continuava a ter uma natureza mais do que modesta e a única decoração que embelezava as paredes eram as pinturas de Hokusai. No quarto das raparigas, duas pinturas adornavam as paredes uma com borboletas e pássaros, pintadas pelo seu pai.
Claro que a Ōi gostaria de ter um quarto e roupas mais luxuosas, isto é para além das pinturas. No entanto, a sua famíla não tinha possibilidades para mais. Obviamente que a família não vivia em pobreza, mas também não podiam exceder-se.
E foi com estes pensamentos que Ōi se deixou dormir. E que sonho estranho ela teve. Foi como se de repente se tivesse levantado do seu futon e se visse a ela própria. Por um momento ficou petrificada devido à sua confusão, ao tentar perceber o que estava diante dos seus olhos. Olhou cuidadosamente à sua volta: estava no seu quarto, onde a Tatsujo dormia e murmurava em sonhos:
"Sotaro, fico bonita neste vestido de casamento?"
Isto era algo que a sua irmã faria. Já estava a sonhar com o casamento, tanto em sonhos como na realidade.
Ōi, ao ver tudo isto, disse atarantada:
"Que estranho, está tudo como sempre esteve. Então porque é que me vejo a mim mesma?"
De repente a menina sentiu um calafrio. Sentiu-se assustada, e sentiu o interior do seu corpo a gelar desconfortavelmente.
"Será que morri mesmo no meu sonho?" murmurou ela.
"Ōi não te preocupes estás viva," disse uma voz do lado de fora do shogi. "Neste momento estás no Mundo dos Sonhos."
"No Mundo dos Sonhos? Quem está aí?" a menina ficou curiosa e amedrontada ao mesmo tempo.
Ela espreitou para o lado de fora, mas não viu ninguém.
"Quem és tu?" ela repetiu a pergunta.
E veio a seguinte resposta "Sou eu o Shotaro,".
"Shotaro? Eu estou a sonhar contigo? Onde é que tu estás?" A Ōi animou-se.
O seu falecido amigo nunca antes lhe tinha aparecido em sonhos desde a sua morte. E a Ōi estava um pouco zangada.
"Eu estou aqui em cima," suou a voz.
A menina olhou à sua volta, como se não acreditasse. Mas continuava a não encontrar ninguém, olhou para cima e gritou surpreendida.
"Tu, tu!" murmurava ela, bastante confusa.
Claro que estava surpreendida... Em vez do rapaz, a Ōi viu um pequeno dragão. Como era de esperar, o corpo era alongado, coberto por escamas brancas e prateadas, da cabeça saíam uns chifres, e um longo bigode adornava a sua face. Os olhos eram enormes e cheios de significado, como se fossem humanos.
"Shotaro? Tu tornaste-te um dragão?" disse a menina depois de conseguir controlar a sua excitação.
"Sim," confirmou o dragão com a voz do menino. "Depois de morrer, fui parar ao Submundo. É aí que as almas dos falecidos são julgadas: as más vão para o inferno, renascem como animais, ou pobres, isto dependendo da gravidade dos seus pecados. As pessoas boas, vão respetivamente para o céu ou renascem como outras pessoas em boas famílias ou ainda outros seres conscientes. No tribunal decidiram que eu fui uma boa pessoa, por isso renasci como um dragão. Ōi não vais acreditar, mas nesta vida o deus dragão Ryūjin é o meu pai.
Claro que a menina já tinha ouvido falar do deus dragão Ryūjin. Este era considerado uma divindade de boa índole, governava o elemento água, patrono do Japão. Por vezes, para defender o Japão ele