Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: August Nemo
Издательство: Bookwire
Серия: Romancistas Essenciais
Жанр произведения: Языкознание
Год издания: 0
isbn: 9783967991963
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nos dão nós graduamos o que valemos em nossa consciência.

      Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de Teresa. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza, que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda incoerências, absurdas e vícios no homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástíca vai vivendo e morrendo.

      IX

      Duas horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando a curiosidade do estudante era já sofrimento.

      — Estará seu pai preso?! - disse ele a Mariana.

      — Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana - respondera ela.

      E Simão replicara:

      — E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus trabalhos ficarão aqui?

      — Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... mas não digo...

      — Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala em sua alma. Diga...

      — Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no começo...

      Simão ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o ânimo esta idéia torva, e afrontosa à singela rapariga: - "Pensará ela em me desviar de Teresa, para se fazer amar?"

      Pensava assim quando chegou o ferrador.

      — Aqui estou de volta - disse ele com semblante festivo. - Sua mãe mandou-me chamar...

      — Já sei... E como soube ela que eu estava aqui?

      — Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa senhoria já tinha ido para Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei; porque a uma pessoa de respeito não se fazem perguntas. Dizia ela que sabia o fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas eu, cá como pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fora para o convento. Disse-lhe que vossa senhoria estava adoentado de uma queda que dera do cavalo abaixo. Tornou ela a perguntar-me se o senhor tinha dinheiro; e eu disse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou dai a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. Aí o tem tal e qual; não sei quanto é.

      — E não me escreveu?

      — Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá o senhor corregedor - respondeu com firmeza mestre João - e também me recomendou que não lhe escrevesse vossa senhoria senão de Coimbra, porque, se seu pai soubesse que o menino cá estava, ia tudo raso lá em casa. Ora ai está.

      — E não lhe falou nos criados de Baltasar?

      — Nem um pio!... Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.

      — E que lhe disse da senhora D. Teresa?

      — Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.

      Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhando da estranha liberalidade, Mariana, abraçando o pai no repartimento vizinho da casa, exclamava:

      — Arranjou muito bem a mentira!

      — Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo lá o arranjaste tu com essa tua cabecinha! Mas a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que nem confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros, mas lá virá tempo em que ele te dê bois a troco de bezerros.

      — Eu não fiz isto por interesse, meu pai... - atalhou ela, ressentida.

      — Olha o milagre! isso sei eu: mas, como diz lá o ditado; quem semeia, colhe.

      Mariana quedou pensativa, e dizendo entre si: - Ainda bem que ele não pode pensar de mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho esperanças nenhumas interesseiras no que fiz.

      Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:

      — Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnância os seus favores, e creio que vossemecê mos faria sem esperança de ganhar com eles; mas, como recebi esta quantia, há-de consentir que lhe dê parte dela para os meus alimentos. Motivos de gratidão a dividas que se não pagam. ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de si e da sua boa filha. Tome este dinheiro.

      — As contas fazem-se no fim - respondeu o ferrador, retirando a mão - e ninguém nos há de ouvir, se Deus quiser. Precisando eu de dinheiro, cá venh9. Por ora, ainda está a capoeira cheia de galinhas, e o pão coze-se todas as semanas.

      — Mas aceite - instou Simão - e dê-lhe a aplicação que quiser.

      — Em minha casa ninguém dá leis senão eu - replicou mestre João, com simulado enfadamento. - Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não falemos mais nisso, se quer que o negócio vá direito até ao fim. E victo-sério!

      Nos cinco subsequentes dias recebeu Simão regularmente cartas de Teresa, umas resignadas e confortadoras, outras escritas na violência exasperada da saudade. Em uma dizia:

      "Meu pai deve saber que estás aí, e, enquanto aí estiveres, decerto me não tira do convento. Seria bom que fosses para Coimbra, e deixássemos esquecer a meu pai os últimos acontecimentos. Senão, meu querido esposo, nem ele me dá liberdade, nem eu sei como hei de fugir deste inferno. Não fazes idéia do que é um convento! Se eu pudesse fazer do meu coração sacrifício a Deus, teria de procurar uma atmosfera menos viciosa que esta. Creio que em toda a parte se pode orar e ser virtuosa, menos neste convento".

      Noutra carta exprimia-se assim:

      "Não me desampares, Simão; não vás para Coimbra. Eu receio que meu pai me queira mudar deste convento para outro mais rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava aqui; outra positivamente me afirmou que o pai diligencia a minha ida para um mosteiro do Porto. Sobretudo, o que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que o intento do pai é fazer-me professar. Por mais que imagine violências e tiranias, nenhuma vejo capaz de me arrancar os votos. Eu não posso professar sem ser noviça um ano, e ir a perguntar três vezes; hei de responder sempre que não. Se eu pudesse fugir daqui!... Ontem fui à cerca, e vi lá uma porta de carro que dá para o caminho. Soube que algumas vezes aquela porta se abre para entrarem carros de lenha; mas infelizmente não se torna a abrir até ao principio do inverno. Se não puder antes, meu Simão, fugirei nesse tempo".

      Tiveram, entretanto, bom e pronto êxito as diligências de Tadeu de Albuquerque. A prelada de Monchique, religiosa de sumas virtudes, cuidando que a filha de seu primo muito de sua devoção e amor a Deus se recolhia ao mosteiro, preparou-lhe casa, e congratulou-se com a sobrinha de tão piedosa resolução. A carta congratulatória não a recebeu Teresa, porque viera à mão de seu pai. Continha ela reflexões tendentes a desvanecê-la do propósito, se algum desgosto passageiro a impedia à imprudência de procurar um refúgio onde as paixões se exacerbavam mais.

      Tomadas todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar sua filha de que sua tia de Monchique a queria ter em sua companhia algum tempo, e que a jornada se faria na madrugada do dia seguinte.

      Teresa, quando recebeu a surpreendente nova, já tinha enviado a carta daquele dia a Simão. Em sua aflitiva perplexidade, resolveu fazer-se doente, e tão febril estava das comoções, que dispensava o artifício. O velho não queria transigir com a doença; mas o médico do mosteiro reagiu contra a desumanidade do pai e da prioresa, interessada na violência. Quis Teresa nessa noite escrever a Simão; mas a criada da prelada, obedecendo às suspeitas da ama, não desamparou a cabeceira do leito da enferma. Era causa a esta espionagem ter dito a escrivã, numa hora de má digestão daquele certo vinho estomacal, que Teresa passava as noites em oração mental, e tinha correspondência com um anjo do céu por intervenção duma mendiga. Algumas religiosas tinham visto a mendiga no pátio do convento esperando a esmola de Teresa; mas cuidaram que era aquela pobre uma devoção da menina. As palavras irônicas da escrivã foram comentadas,