Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Eca de Queiros
Издательство: Bookwire
Серия: Romancistas Essenciais
Жанр произведения: Языкознание
Год издания: 0
isbn: 9783968583242
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Tome uma chávena de chá... Ah! é um grande bálsamo!...

      — Não, obrigado, almocei já.

      — Mas não! Quando digo um grande bálsamo refiro-me à fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?

      E prolongou a sua risadinha com complacência. Queria agradar a Natário, pelo princípio que repetia muito, com um sorriso astuto - "que quem está metido na política deve ter por si a padraria".

      — E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a afluência dos devotos está uma cidade... Grandes hotéis, bulevares, belas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento econômico, correndo parelhas com o renascimento religioso.

      E deu com satisfação um puxãozinho grave ao colarinho.

      — Pois eu vinha aqui falar a V. Ex.a a respeito dum comunicado na Voz do Distrito.

      — Ah! interrompeu o secretário-geral, perfeitamente, li! Uma famosa verrina... Mas literariamente, como estilo e como imagens, que miséria!

      — E que tenciona V. Ex.a fazer, senhor secretário-geral?

      O Sr. Gouveia Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:

      — Eu?

      Natário disse, destilando as palavras:

      — A autoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha V. Ex.a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...

      E acrescentou com a mão sobre o peito:

      — Sou apenas um pobre padre sem influência... Venho, como particular, perguntar ao senhor secretário-geral se se pode permitir que caracteres respeitáveis da Igreja diocesana sejam assim difamados...

      — É certamente lamentável que um jornal...

      Natário interrompeu, empertigando o busto com indignação:

      — Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretário-geral!

      — Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima luz! Justamente o que nós queremos é luz!

      Natário tossiu devagarinho, disse:

      — Perfeitamente. Mas então quando pelas eleições, a autoridade nos vier pedir o nosso auxilio, nós vendo que não encontramos nela proteção, diremos simplesmente: "Non possumus!"

      — E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abades, nós vamos trair a civilização?

      E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:

      — Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãe!

      — Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é oposição, observou então Natário; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...

      O secretário-geral teve um sorriso:

      — Meu caro senhor cura, V. St não está no segredo da política. Entre o doutor Godinho e o governo civil não há inimizade, há apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma inteligência... Vai reconhecendo que o grupo da Maia não produz nada... O doutor Godinho aprecia a política do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.

      E, rebuçando-se todo num mistério de Estado, acrescentou:

      — Coisas de alta política, meu caro senhor.

      Natário ergueu-se:

      — De modo que...

      — Impossibilis est, disse o secretário. De resto acredite, senhor cura, que, como particular, revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e pode dizê-lo a todo o clero diocesano, a Igreja católica não tem um filho mais fervente que eu, Gouveia Ledesma... Quero porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a ciência... Foram sempre as minhas idéias; preguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no grêmio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Somente lamento que ele não arvore a bandeira da civilização! - E o antigo Bibi, contente da sua frase, repetia-a: - Sim, lamento que ele não arvore a bandeira da civilização... O Syllabus é impossível neste século de eletricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar dum jornal, porque ele diz duas ou três pilhérias sobre o sacerdócio, nem nos convém, por altas razões de política, escandalizar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.

      — Senhor secretário-geral, disse Natário curvando-se.

      — Um criado de V. S.a. Sinto que não tome uma chávena de chá. E como vai o nosso chantre?

      — S. Ex. a nestes últimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.

      — Sinto. Uma negligência também! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...

      Natário correu à Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atrás das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.

      — Então? disse ele, indo rapidamente ao encontro de Natário.

      — Nada!

      Amaro mordeu o beiço: e enquanto Natário lhe contava, excitado, a conversação com o secretário-geral, "e como argumentara com ele, e como o homem tagarelara, tagarelara", - a face do pároco cobria-se duma sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guarda-sol, a erva que crescia nas fendas do terraço.

      — Um patarata! resumiu o padre Natário com um grande gesto. Pela autoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei-de saber quem é, padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...

      No entanto, João Eduardo desde o domingo triunfava; o artigo fizera escândalo: tinham-se vendido oitenta números avulsos do jornal, e o Agostinho afirmara-lhe que na botica da Praça a opinião era "que o liberal conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça" ! _

      — És um gênio, rapaz, disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!

      João Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatório que ia pela cidade".

      Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalizar a S. Joaneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu é que o escrevi! - e já ruminava outro, mais terrível, que se deveria intitular: O diabo feito eremita, ou O sacerdócio de Leiria perante o século XIX!

      O doutor Godinho encontrara-o na Praça, e parara com condescendência, para lhe dizer:

      — A coisa tem feito barulho. Você é o diabo! E a piada ao Brito é bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do regedor...

      — V. Ex.a não sabia?

      — Não sabia, e saboreei. Você é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa como um comunicado. Você compreende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem seus escrúpulos... Enfim, é melhor e é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no meu foro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição passada... Ah! e outra coisa, o seu negócio arranja-se. Lá para o mês que vem tem o seu emprego no governo civil.

      —