As eruditas e clarissimas demonstrações do visconde de Santarem10 e do sr. H. Major11 pozeram tão fóra de duvida, o caracter fabuloso das viagens[11] normandas do XIV seculo, e do supposto commercio ou trato de mercadorias, feito entre Dieppe e Roão, e a costa de Africa, que bem podemos passar em silencio o que Villaud e o sr. Margry nos dizem a tal respeito.
Os nossos navegadores tiveram conhecimento da malagueta ainda em tempo do infante D. Henrique, como se deduz da já citada passagem de João de Barros. Quando falleceu o infante, ainda não tinhamos chegado á parte da costa, que mais especialmente recebeu depois o nome d'aquella especiaria, e corre do cabo Mesurado ao cabo das Palmas; mas tinhamos conhecimento dos terrenos banhados pelo rio Gambia, rio Grande e rio de Geba, aonde egualmente se encontra. Das relações de viagem, que deixou o veneziano Alvise Cadamosto, tanto das duas a que elle proprio foi, por mandado do infante, como da que emprehendeu Pedro de Cintra, o qual chegou ao arvoredo de Santa Maria, além do cabo Mesurado e já na costa da Malagueta, não consta que se encontrasse a droga nas terras d'onde é natural. Falla é verdade da malagueta, mas como de mercadoria, que as caravanas de passagem em Hoden, ou Guaden traziam de Tombuto e outras regiões habitadas pelos negros12. Conhecia pois Cadamosto aquella especiaria, e é singular que a não encontrasse ou não mencionasse nas noticias detalhadas que dá das terras do Gambia, e do Casamança, tanto mais que o genovez Antonio da Nolle, ou Antonio Uso di Mare, seu companheiro de viagem, fallando do rio Gamba, diz que ahi entrou porque in ipsa regione aurum et meregeta colligitur13. Na narração da viagem de Diogo Gomes, levada a cabo ainda em tempo do infante pelos annos de 1456 ou 1457, encontramos uma interessante menção. Estando detidas as tres caravellas de seu commando pouco além da foz do rio Grande (o actual rio de Geba), pelas correntes fortissimas, que lhes embargavam o passo, vieram de terra os naturaes, trazendo pannos de algodão, marfim e malagueta em grão e tambem nos fructos em que nasce, de que elle (Diogo Gomes) teve grande contentamento14.[12]
É para notar, que os nossos escriptores não fallam da malagueta, como de coisa nova e então descoberta, mas sim como de especiaria bem conhecida, e de feito sabemos o era, a qual, por ser preciosa, os navegadores folgavam de encontrar. É um sentimento analogo, ao que, alguns annos depois, deviam experimentar chegando ás terras da pimenta e do cravo.
Encontramos a prova da importancia, que desde logo teve a malagueta em um valioso documento do XV seculo, o celebre globo de Martinho Behaim. É bem sabido, que este notavel cosmographo, discipulo do mais afamado astronomo dos seus tempos, Regiomontanus, se estabeleceu em Portugal, para onde fôra attraido, como outros distinctos sabios, pela fama, que ao longe corria da revolução feita nos conhecimentos geographicos, e na arte de navegar pelos descobrimentos dos portuguezes. Assistiu muitos annos em Lisboa, e na ilha do Fayal, d'onde era natural sua mulher, fazendo apenas algumas curtas viagens á Allemanha, sua patria, e vindo a fallecer em Lisboa no anno de 1506. N'esta cidade se encontrou de 1480 a 1484 com Cristovão Colombo, o qual já andava empenhado nos seus projectos de viagem ao occidente, e alguns auctores pretenderam, ainda que com pouco fundamento, attribuir-lhe a gloria dos descobrimentos de Colombo, e tambem dos de Magalhães, dizendo que se haviam guiado por seus avisos e conselhos, ou por alguns mappas seus, em que se achava indicada a existencia do continente americano e mesmo a sua terminação austral. No anno de 1484 acompanhou Martinho Behaim a Diogo Cam, em uma viagem ao Congo, e de volta á Europa, ajudado pelo que elle proprio observara, e pelas informações colhidas entre os portuguezes, construiu o globo que ainda se conserva em Nuremberg15. Nos rotulos ahi gravados, além de outras indicações, que não vem para o nosso assumpto, lê-se o seguinte: «Chegámos ao pays que chamão reino de Gambia aonde cresce a malagueta,[13] afastado de Portugal oitocentas léguas, passámos depois ao pays do rei de Furfur que está a mil e duzentas léguas, aonde cresce a pimenta chamada de «Portugal16.» Por aqui se vê que estas drogas não só eram bem conhecidas, como tidas pelos mais valiosos productos vegetaes d'aquellas regiões, e por isso mencionadas nos curtos rotulos aonde se descreviam as principaes feições das terras figuradas no globo.
Dos fins do XV seculo, ou principios do seguinte temos uma curiosa e detalhada noticia da malagueta e do seu commercio, em um livro que ainda se conserva inedito, intitulado Esmeraldo de situ orbis, escripto por Duarte Pacheco, um dos capitães portuguezes mais conhecidos por seu denodo e extremado valor. Dos seus heroicos feitos na India fazem menção João de Barros, Castanheda e Camões. Voltando da India governou o castello da Mina, e caíndo depois, por intrigas que lhe moveram, no desagrado d'el-rei, foi preso e terminou a vida pobre e abandonado. Da ingratidão d'el-rei D. Manuel o vingaram bem algumas admiraveis oitavas de Camões17. O Esmeraldo foi terminado, ao que parece, no anno de 1503, isto é logo que Duarte Pacheco voltou da India, para onde fôra em 1503 na armada de Affonso de Albuquerque, e aonde ainda permanecia em 1504. Attendendo ao curto periodo decorrido entre o regresso do oriente e o offerecimento do livro a el-rei D. Manuel, é natural suppor que estivesse já composto antes da sua partida, e que as informações minuciosas sobre a costa de Africa, que ali se encontram, fossem colligidas nas viagens de que Duarte Pacheco falla, feitas nos fins do seculo XV, ainda em tempo de D. João II, de cuja casa era cavalleiro18.
Terei de examinar mais detidamente este livro nas paginas seguintes, basta[14] dizer por agora, que o auctor conhecia mui bem a malagueta e as suas diversas designações, pois na descripção da costa de Africa, diz fallando da matta de Santa Maria: «e d'aqui se comessa o resguate da malagueta que em latim se chama grany paradisy (sic)».
Ainda devemos citar uma passagem da historia ou relação da viagem de um piloto portuguez á ilha de S. Thomé. Não era homem vulgar este piloto, antes parece ter sido muito lido e erudito. Estando em Veneza travou amisade com o bem conhecido Jeronymo Fracastor, e com o conde Romualdo de la Torre, e occupou-se em estudar e interpretar o periplo de Hannon. O conhecimento, que já então tinha da costa da Africa occidental aonde fôra varias vezes, habilitava-o a lançar alguma luz na obscura relação, que nos ficou, da tão discutida e celebrada viagem dos carthaginezes. E certo que Ramusio se serviu muito, na sua interpretação do periplo, das observações e esclarecimentos fornecidos pelo portuguez19. De volta a Villa do Conde, d'onde era natural, escreveu o anonymo piloto a relação de uma das suas viagens á ilha de S. Thomé, relação que enviou ao Conde de la Torre, e que, vertida em italiano, foi publicada por J. B. Ramusio. Deprehende-se das datas citadas ter a viagem tido logar pelos annos de 1551 ou 1552.
No capitulo VI20 tratando da Costa de Guiné e Benim diz o seguinte: «Nasce n'esta costa a especiaria chamada malagueta, muito semelhante ao milho da Italia, porém de um gosto forte como a pimenta; produz-se alli tambem uma pimenta fortissima, mais do dobro do que he a de Calicut a qual nós os Portuguezes, porque ella tem um pezinho que conserva depois de secca chamamos pimenta de cauda21; he muito semelhante ás cubebas em a sua figura, porém para o paladar é tão forte, que uma onça d'ella faz o mesmo effeito[15] que faria meia libra da ordinaria; e ainda que seja prohibido debaixo de gravissimas penas exportal-a da dita costa, tirão-na comtudo ás escondidas vendendo-a em Inglaterra por um preço dobrado d'aquelle porque venderião a pimenta vulgar. Procede esta prohibição, de que desconfiando ElRei N. S.r que esta planta não fizesse empatar e abaratar a grande quantidade de pimenta que vem cada anno do Calicut determinou que de modo algum se podesse conduzir para fóra