No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a tia, que havia tanto tempo que não vira, e ella correspondia-lhe, beijando-o com todo o carinho e chorando.
Chorando por quê? Por quê? Pela muita bondade que tinha n'aquella alma. A bondade é um rico manancial, que brota lagrimas ao toque da menor commoção.
Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados amplexos e mais provas de affecto de sua tia, quando se sentiu prêso em novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava tambem e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados, como aquelles que veem a ferver do coração, e isto acompanhado de um – Ai o meu rico filho! – tão eloquente como os beijos.
Henrique, habituado ás etiquetas da civilisação urbana, que estabelece entre amos e criados distancias desconhecidas na aldeia, extranhou um pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ella sem reflexões.
Maria de Jesus dizia, ainda admirada:
– Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois é este o menino que vinha á cozinha limpar o tacho, em que se fazia a marmelada!
– É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!
– Lambareiro! – disse a tia, sorrindo. – Se eu soubesse que eras assim, não tinha mandado lavar o tacho do dôce, que ainda hoje serviu.
– Sim? Então ainda se faz dôce cá em casa, como d'antes? – perguntou Henrique.
– Pois então? todos os annos. Mas valha-me Deus! E não querem vêr nós aqui postas á palestra! Entra, menino, entra cá para dentro, que está frio e tu deves vir cançado.
– Um pouco, um pouco, tia Dorothéa.
E Henrique entrou para a sala.
Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas, em cuja casa se vae alojar com Henrique de Souzellas.
Não se imagina a santa paz de espirito, a placidez de paraiso, que estas duas mulheres – D. Dorothéa e Maria de Jesus, ama e criada – gosavam na quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souzellas ia procurar allivio aos seus muitos e variados males.
Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus habitos, ambas muito tementes a Deus e amigas do proximo, as duas celibatarias passavam alli uma vida, rescendente a um suave perfume de santidade, como o da alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as gavetas e de que se repassava toda a roupa branca, objecto muito dos seus cuidados.
A inalteravel harmonia, mantida havia tantos annos entre as duas, poderia ser exemplo á maior parte das familias d'este mundo. Entre velhas, que nunca tiveram filhos, circumstancia que em geral faz o humor mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.
Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem mutuas concessões; cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria bem. Nunca a dentro d'aquellas paredes se ouviu uma só palavra, que, por mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciencia, destoasse da invariavel monotonia dos seus habituaes dialogos.
Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maior parte, devorados por demandas entre primos e irmãos, paes e filhos, marido e mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em improductivo terreno.
As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento affligiam as duas sexagenarias e augmentavam o numero de Padre-Nossos com que todas as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram validas, pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua propria.
Ouvir rezar as duas santas velhas – e era essa a occupação dos seus curtos serões – equivalia a escutar uma resenha das differentes calamidades, que perseguem e apoquentam o genero humano, e que ellas, d'esta maneira, pretendiam evitar.
– Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal, para que nos livre do fogo – dizia D. Dorothéa, e seguia-se o Padre-Nosso. – Outro a Santa Luzia milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo; outro a S. Braz, para que nos proteja da garganta; outro a S. Vicente, por causa das bexigas, etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre as aguas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro por os orphãos; outro pelos doentes; um pelos vivos; outro pelos mortos; um pelos justos; outro pelas almas do purgatorio, não hesitando até a sua caridade em transpôr as portas do inferno e pedir tambem a remissão dos condemnados. E ainda depois d'esta minuciosa e longa enumeração, um ultimo Padre-Nosso fechava a primeira serie, comprehendendo todos os não contemplados por esquecidos, ou por não terem logar na classificação.
Compunha a segunda serie a menção especial de cada uma das pessoas fallecidas das suas relações: parentes, amigos e conhecidos, por cujo «eterno descanço entre os resplendores da luz perpetua» oravam com verdadeira compunção. N'esta phalange ia tambem D. João VI, por quem, havia quarenta annos, se costumára a rezar D. Dorothéa, e não era ella mulher que rompesse com habitos semi-seculares. Era esse talvez o unico Padre-Nosso que a alma do monarcha recebia no Céo, com procedencia do seu antigo reino.
Quanto ás qualidades physicas, a imaginação dos leitores pintar-lh'as-ha melhor do que a minha descripção. Forçosamente conheceram uma d'estas boas velhas, para quem nos sentimos attrahidos; a quem se estima e com quem se brinca ao mesmo tempo; que nos podem inspirar sacrificios e simultaneamente nos tentam a travessura; a quem mystificamos agora e logo beijamos respeitosamente a mão; contra quem não reprimimos impaciencias, escutando depois submissos os seus nunca terminados sermões.
Ora estas velhas assim teem quasi sempre um typo uniforme, que é o reflexo exterior da bondade do coração; esse era o typo da tia Dorothéa com o seu vestido rôxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua touca de folhos alvissimos e de fitas escuras, o mólho de chaves á cinta, o livro de orações na algibeira e os oculos a marcarem no livro a reza habitual.
Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma alma. Succedêra de mais com ellas o que é sempre de esperar de uma longa e intima convivencia; haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de pensar e de vêr e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer d'ellas ser como que uma premissa d'onde a modo de conclusão, se deduzia a outra facilmente.
Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao primeiro exame que fez das duas santas mulheres.
Entremos agora com elle para dentro da sala.
Quem, vinte annos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e ahi voltasse de novo com Henrique julgaria, á vista da uniforme disposição de coisas mantida alli dentro em tão distantes épocas, que todo esse tempo não fôra mais do que um sonho de momentos.
Encontraria os mesmos móveis, na mesma collocação; as mesmas cobertas nos leitos, apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguaes cortinas nas janellas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosphera dos quartos, os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómmodas.
A memoria de Henrique, aquella inconstante e leviana memoria de rapaz estouvado, sentia-se acordar, á vista d'aquillo tudo.
A sala tinha uma physionomia caracteristica.
Supponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a óca, e alumiada por duas mal rasgadas janellas de peitoril, com os seus competentes assentos de pedra, um defronte do outro, com meias cortinas de cambraia sempre corridas – pleonasmo de discrição que se não justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se. O tecto era de almofadas de castanho, em tempos pintado de azul, agora de uma côr duvidosa. Havia quinze annos que D. Dorothéa falava em o mandar retocar, mas o projecto, momentoso como era, ia sendo adiado de primavera para primavera. Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija saliente, onde coroadas maçãs de inverno aguardavam, em vistosa fileira, a completa maturação, e derramavam no aposento o mais agradavel aroma. O pavimento, apesar de muito picado de caruncho, andava limpo e escafunado– termo do vocabulario de casa – que mettia gôsto vêl-o. Cada parede era um museu de estampas de devoção. Poucos santos e santas da côrte celestial não estavam alli representados e com um colorido, que era o maior peccado, a que estes bemaventurados