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CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
1 – O XV Governo Constitucional assumiu, no seu programa, o compromisso de proceder à revisão do processo de recuperação de empresas e falência, com especial ênfase na sua agilização, bem como dos modos e procedimentos da liquidação de bens e pagamentos aos credores, tendo para o efeito apresentado à Assembleia da República uma proposta de lei de autorização de revisão do enquadramento legal actualmente em vigor nesta matéria.
O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, constituiu um momento importante na regulamentação legal dos problemas do saneamento e falência de empresas que se encontrem insolventes ou em situação económica difícil. Eliminando a distinção, nesta sede, entre insolvência de comerciantes e não comerciantes, retirando do Código de Processo Civil a regulamentação processual e substantiva da falência, e conjugando num mesmo diploma, de forma inovadora, essa matéria com a da recuperação da empresa, a par de outras inovações de menor alcance, obtiveram-se com aquele diploma significativos avanços tanto do ponto de vista do aperfeiçoamento técnico-jurídico como da bondade das soluções respeitantes à insolvência de empresas e consumidores.
Porém, várias circunstâncias tornaram premente a necessidade de uma ampla reforma, como hoje é amplamente reconhecido e como com o decurso dos anos se foi verificando.
As estruturas representativas dos trabalhadores e os agentes económicos têm recorrentemente realçado a urgência na aprovação de medidas legislativas que resolvam ou, pelo menos, minorem os problemas que actualmente são sentidos na resolução célere e eficaz dos processos judiciais decorrentes da situação de insolvência das empresas. A manutenção do regime actual por mais tempo resultaria em agravados prejuízos para o tecido económico e para os trabalhadores.
O carácter muitas vezes tardio do impulso do processo, a demora da tramitação em muitos casos, sobretudo quando processada em tribunais comuns, a duplicação de chamamentos dos credores ao processo, que deriva da existência de uma fase de oposição preliminar, comum ao processo de recuperação e ao de falência, a par de uma nova fase de reclamação de créditos uma vez proferido o despacho de prosseguimento da acção, as múltiplas possibilidades de convolação de uma forma de processo na outra, o carácter típico e taxativo das providências de recuperação, são, a par de vários outros aspectos que adiante se menciona, alguns dos motivos apontados para o inêxito da aplicação do CPEREF.
2 – A reforma ora empreendida não se limita, porém, à colmatação pontual das deficiências da legislação em vigor, antes assenta no que se julga ser uma mais correcta perspectivação e delineação das finalidades e da estrutura do processo, a que preside uma filosofia autónoma e distinta, que cumpre brevemente apresentar.
3 – O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.
Quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quando aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais. Urge, portanto, dotar estes dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores, enquanto impossibilidade de pontualmente cumprir obrigações vencidas.
Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado.
Quando na massa insolvente esteja compreendida uma empresa que não gerou os rendimentos necessários ao cumprimento das suas obrigações, a melhor satisfação dos credores pode passar tanto pelo encerramento da empresa, como pela sua manutenção em actividade. Mas é sempre da estimativa dos credores que deve depender, em última análise, a decisão de recuperar a empresa, e em que termos, nomeadamente quanto à sua manutenção na titularidade do devedor insolvente ou na de outrem. E, repise-se, essa estimativa será sempre a melhor forma de realização do interesse público de regulação do mercado, mantendo em funcionamento as empresas viáveis e expurgando dele as que o não sejam (ainda que, nesta última hipótese, a inviabilidade possa resultar apenas do facto de os credores não verem interesse na continuação).
Entende-se que a situação não corresponde necessariamente a uma falha do mercado e que os mecanismos próprios deste conduzem a melhores resultados do que intervenções autoritárias. Ao direito da insolvência compete a tarefa de regular juridicamente a eliminação ou a reorganização financeira de uma empresa segundo uma lógica de mercado, devolvendo o papel central aos credores, convertidos, por força da insolvência, em proprietários económicos da empresa.
4 – É com base nas considerações anteriores, sinteticamente expostas, que o novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que é aprovado pelo presente diploma, aproveitando também o ensinamento de outros ordenamentos jurídicos, adopta uma sistematização inteiramente distinta da do actual CPEREF (sem prejuízo de haver mantido, ainda que nem sempre com a mesma formulação ou inserção sistemática, vários dos seus preceitos e aproveitado inúmeros dos seus regimes).
5 – Os sistemas jurídicos congéneres do nosso têm vindo a unificar os diferentes procedimentos que aí também existiam num único processo de insolvência, com uma tramitação supletiva baseada na liquidação do património do devedor e a atribuição aos credores da possibilidade de aprovarem um plano que se afaste deste regime, quer provendo à realização da liquidação em moldes distintos, quer reestruturando a empresa, mantendo-a ou não na titularidade do devedor insolvente. É o caso da recente lei alemã e da reforma do direito falimentar italiano em curso.
6 – O novo Código acolhe esta estrutura, como logo resulta do seu artigo 1.º e, por outro lado, do artigo 192.º, que define a função do plano de insolvência.
Fugindo da errónea ideia afirmada na actual lei, quanto à suposta prevalência da via da recuperação da empresa, o modelo adoptado pelo novo Código explicita, assim, desde o seu início, que é sempre a vontade dos credores a que comanda todo o processo. A opção que a lei lhes dá é a de se acolherem ao abrigo do regime supletivamente disposto no Código – o qual não poderia deixar de ser o do imediato ressarcimento dos credores mediante a liquidação do património do insolvente ou de se afastarem dele, provendo por sua iniciativa a um diferente tratamento do pagamento dos seus créditos. Aos credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação integral do património do devedor, nos termos do regime disposto no Código ou nos de que constem de um plano de insolvência que venham a aprovar, ou através da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano.
Há que advertir, todavia, que nem a não aprovação de um plano de insolvência significa necessariamente a extinção da empresa, por isso que, iniciando-se a liquidação, deve o administrador da insolvência, antes de mais, diligenciar preferencialmente pela sua alienação como um todo, nem a aprovação de um plano de insolvência implica a manutenção da empresa, pois que ele pode tão somente regular, em termos diversos dos legais, a liquidação do património do devedor.
Não valerá, portanto, afirmar que no novo Código é dada primazia à liquidação do património do insolvente. A primazia que efectivamente existe, não é demais reiterá-lo, é a da vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos, em condições de igualdade quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral.
7 – Cessa, assim, porque desnecessária, a duplicação de formas de processo especiais (de recuperação e de falência) existente no CPEREF, bem como a fase preambular que lhes era comum, e que era susceptível de gerar, inclusivamente, demoras evitáveis na tramitação do processo, nomeadamente pela duplicação concomitante de chamamento dos credores, e também por, em inúmeros